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Venezuelanos descartaram notas de dinheiro nas ruas devido a desvalorização da moeda?

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Venezuelanos descartaram notas de dinheiro nas ruas devido a desvalorização da moeda?

Venezuelanos descartaram notas de dinheiro nas ruas devido a desvalorização da moeda?

Desde março de 2019, uma determinada foto vem viralizando nas redes sociais, visto que ela mostra inúmeras notas de dinheiro espalhadas na sarjeta de uma rua. Segundo um usuário no Facebook chamado “Steve Hulett” a foto retrataria uma rua da Venezuela (versão arquivada), e isso exemplificaria o quão inútil era o dinheiro no país.

Ao final de sua publicação, ele simplesmente disse: “Bem-vindo ao Socialismo“. Essa seria uma espécie de alusão sobre a suposta causa por trás de tal lamentável cena, que até o momento já foi compartilhada cerca de 330 mil vezes.

Publicação de Steve Hulett, no Facebook, no dia 22 de março de 2019

Entretanto, será que os venezuelanos estariam descartando notas de dinheiro nas ruas devido a desvalorização da moeda? Será que essa foto é verdadeira? Foi realmente tirada em uma rua da Venezuela? Descubra agora, aqui, no E-Farsas!

Verdadeiro ou falso?

A foto é verdadeira, mas seu contexto foi ligeiramente distorcido. Na verdade, a foto foi tirada após homens encapuzados terem invadido e depredado uma agência do Banco Bicentenario na cidade de Mérida, na Venezuela, e espalhado notas antigas de bolívares pelas ruas adjacentes.

A ação criminosa, em plena luz do dia, ocorreu no dia 11 de março de 2019. Segundo o site de notícias “Maduradas“, os criminosos teriam encontrado apenas notas de bolívares “fortes”, um antigo cone monetário, que ficou vigente entre 1º de janeiro de 2008 a 5 de dezembro de 2018. Vale lembrar nesse ponto, que em 20 agosto de 2018 o bolívar “forte” foi substituído pelo bolívar “soberano”. Assim sendo, a população teve pouco mais de três meses para trocar as notas de dinheiro.

Homens encapuzados invadiram e depredaram uma agência do Banco Bicentenario na cidade de Mérida, na Venezuela.

A ação criminosa, realizada em plena luz do dia, ocorreu no dia 11 de março de 2019.

A fachada da agência do Banco Bicentenario também foi pichada.

Uma Dose de Realidade

Enfim, o mais importante a saber nesse caso é que o bolívar “forte” saiu completamente de circulação no dia 5 de dezembro de 2018, ou seja, a partir dessa data as notas correspondentes a esse antigo cone monetário passaram a não valer absolutamente nada.

Uma vez que essas notas de dinheiro não valiam absolutamente nada, os bandidos espalharam as notas pelas ruas adjacentes a agência bancária e, inclusive, chegaram a queimar alguns montantes. Aparentemente, até mesmo bandidos protestam contra a situação econômica na Venezuela.

Uma vez que essas notas de dinheiro não valiam absolutamente nada, os bandidos espalharam as notas pelas ruas adjacentes a agência bancária e, inclusive, chegaram a queimar alguns montantes.

Aparentemente, até mesmo bandidos protestam contra a situação econômica na Venezuela.

Portanto, mais uma vez: a foto não retrata a ação da população venezuelana descartando notas de dinheiro vigentes no país. A foto retrata a ação de criminosos, que invadiram e depredaram uma agência bancária na cidade de Mérida, e posteriormente, ao se depararem apenas com notas antigas e sem valor, as espalharam por ruas próximas da referida agência.

Temos a Confirmação que se Tratou Realmente de uma Ação Criminosa?

Segundo o site “Maduradas”, a ação foi confirmada por Williams Dávila, deputado da Assembleia Nacional, assim como por Leonardo León, correspondente do jornal venezuelano “El Nacional”, no estado de Mérida. León disse que, após o incidente, as tropas da Guarda Nacional Bolivariana (GNB), da Polícia Estadual de Mérida e da CICPC (Corpo de Investigações Científicas, Penais e Criminalísticas) foram até o local.

Não houve informações de que pessoas foram detidas ou feridas durante a ação.

Leonardo León, correspondente do jornal venezuelano “El Nacional”, disse que, após o incidente, as tropas da Guarda Nacional Bolivariana (GNB), da Polícia Estadual de Mérida e da CICPC (Corpo de Investigações Científicas, Penais e Criminalísticas) foram até o local.

Não houve informações de que pessoas foram detidas ou feridas durante a ação.

Outros jornalistas (a exemplo de Nellie B. Izarza) e veículos de imprensa (a exemplo do El Pitazo, Diario de Lara, Noticias Venezuela e El Nacional) também repercutiram essa informação. Um ponto interessante, no entanto, é que o site do jornal “El Nacional” divulgou a notícia como se “cidadãos” tivessem tentado roubar um banco. Já o “Diario de Lara” divulgou apenas que “homens encapuzados” invadiram o banco.

Sinceramente, apesar de ser compreensível a situação econômica na Venezuela, isso não dá o direito a ninguém invadir, depredar ou saquear uma agência bancária. Tais indivíduos, independentemente das necessidades pessoais, devem ser tratados como eles realmente são: criminosos. Portanto, sim, se tratou de uma ação criminosa.

A Foto Foi Realmente Tirada Após a Ação Criminosa na Cidade de Mérida, na Venezuela?

O usuário “Steve Hulett” não indicou a cidade e nem o autor da fotografia. No entanto, todas as evidências, inclusive visuais, apontam que a foto tenha sido tirada após a ação criminosa ocorrida em Mérida. Podemos, inclusive, listar três fortes indicativos:

1) Não há nenhuma evidência na internet, que a foto disseminada pelo usuário “Steve Hulett” tenha sido publicada antes de 11 de março de 2019.

2) Fotos tiradas após a ação criminosa indicam que se trata do mesmo local. Reparem na sequência de fotos, abaixo:

Foto mostrando a rua 33 e a esquina com a Avenida 3 Independência

Foto mostrando a Avenida 3 Independência, em Mérida, repleta de notas de bolívares fortes.

Foto mostrando um trecho da Avenida 3 Independência, em Mérida.

Agora, reparem novamente na foto disseminada pelo usuário “Steve Hulett”:

Notaram como a calçada, a vegetação e as edificações são exatamente as mesmas das fotos divulgadas da ação criminosa?

3) A imagem via satélite da região não deixa dúvidas sobre a localização

Apesar do Google Street View ser praticamente inexistente em Mérida, a imagem via satélite não deixa dúvidas que a foto foi tirada na Avenida 3 Independência.

Imagem via satélite da região onde aconteceu a ação criminosa

O supermercado “Abasto San Pedro” fica localizado no Edifício Chama, que é o mesmo que aparece em uma das fotos tiradas após a ação criminosa. Esse supermercado fica no cruzamento da rua 33 com a Avenida 3 Independência. Se caminhássemos do banco até o supermercado, e virássemos a direita, cairíamos na Avenida 3, local onde a foto desta postagem foi tirada.

E se Fossem Bolívares “Soberanos”?

Provavelmente, se os criminosos tivessem encontrado notas de bolívares soberanos na agência bancária (algo que seria relativamente raro), eles não espalhariam as notas em via pública. Apesar da moeda venezuelana ser extremamente desvalorizada (independente da denominação que possua), o desabastecimento ser recorrente e a inflação gritante, o dinheiro físico ainda possui uma certa utilidade.

Nesse ponto, vale a pena citar um breve retrospecto.

O Bolívar “Forte”

Entre 31 de março de 1879 e 31 de dezembro 2007, ou seja, por mais de 100 anos, a moeda da Venezuela era simplesmente chamada de bolívar. Porém, isso mudou em 1º de janeiro de 2008, quando o então presidente Hugo Chávez implantou o bolívar “forte”. O motivo? A inflação que assolava o país. Chávez simplesmente cortou três zeros, ou seja, 1.000 bolívares passaram a valer 1 bolívar forte. O problema é que cortar zeros não resolveria os problemas do país, apenas simplificava operações como o pagamento de compras e o preenchimento de cheques.

Entre 31 de março de 1879 e 31 de dezembro 2007, ou seja, por mais de 100 anos, a moeda da Venezuela era simplesmente chamada de bolívar. Porém, isso mudou em 1º de janeiro de 2008, quando então presidente Hugo Chávez implantou o bolívar “forte”. O motivo? A inflação que assolava o país.

O Bolívar “Soberano”

A maior prova disso ocorreu em 20 de agosto de 2018 com a criação do bolívar “soberano”, que dessa vez cortou mais cinco zeros, ou seja, 100.000 bolívares “fortes” passaram a valer 1 bolívar soberano. Na época, essa foi uma amostra mais do que gritante do flagelo econômico da Venezuela.

Textos publicados no jornal “O Globo“, “Correio Braziliense“, além de sites como o “Info Money” também alertavam que o novo corte de zeros na moeda venezuelana não seria eficaz.

A maior prova disso ocorreu em 20 de agosto de 2018 com a criação do bolívar “soberano”, que dessa vez cortou mais cinco zeros, ou seja, 100.000 bolívares “fortes” passaram a valer 1 bolívar soberano. Essa é uma amostra gritante do flagelo econômico da Venezuela.

Segundo a revista Veja, a estratégia de cortar zeros da moeda para tentar controlar a inflação não era inédita. O Brasil já tinha recorrido a esse remédio em várias ocasiões – a última delas em 1994. Antes disso, o Brasil já havia cortado três zeros da sua moeda em 1942 (criação do cruzeiro), 1967 (cruzeiro novo), 1986 (cruzado), 1989 (cruzado novo) e 1993 (cruzeiro real). Em 1994, o Brasil trocou o cruzeiro real pelo real – 2.750 cruzeiros reais passaram a valer 1 real. A troca do cruzeiro real pelo real não foi uma simples conversão monetária. Houve todo um plano econômico sólido, que permitiu a estabilidade da moeda que temos até hoje.

A Situação do Bolívar “Soberano” e a Utilização de Cartões de Débito

Uma matéria do jornal “Los Angeles Times” intitulada “In Venezuela, where the currency is unstable and scarce, many rely on debit cards” (“Na Venezuela, onde a moeda é instável e escassa, muitos contam com cartões de débito“, em português), publicada em 7 de fevereiro de 2019, retratou, mais uma vez, a situação econômica na Venezuela.

No texto foi mencionado o depoimento de um cidadão chamado Antonio Rodriguez, que havia passado três bananas e duas laranjas, algo equivalente a 30 centavos de dólar, no cartão de débito. O motivo? Não havia dinheiro físico. Esse era um lamento frequente na Venezuela, um país outrora próspero envolvido em turbulências políticas e econômicas, onde a hiperinflação e a resultante escassez de notas bancárias geraram uma economia onipresente e não-monetária.

Grande parte da população, especialmente em áreas urbanas, estava usando cartões de débito para pagar compras básicas, incluindo alimentos e demais despesas domésticas. Muitas compras rotineiras equivaliam a menos de um dólar americano que, na época, era equivalente a cerca de 3.300 bolívares. Prosperando paralelamente com os cartões de débito estava o mercado negro de dólares, que muitos venezuelanos acumulavam para realizar grandes compras. Porém, as aquisições do dia a dia eram inevitavelmente pagas em bolívares, via cartões de débito.

Um vendedor de rua usando um leitor de cartão de débito para vender uma barra de chocolate em um quiosque em Caracas.

A hiperinflação havia devastado o poder aquisitivo e empurrado as pessoas para a miséria (cerca de 90% da população estaria nessa condição). Segundo Alexander Guerrero, um economista da Universidade Metropolitana de Caracas, sequer valia mais a pena calcular a inflação do país. A capacidade de produção de moeda do país – muitas notas bancárias são impressas no exterior, aumentando os custos – não conseguiu acompanhar o ritmo do naufrágio do bolívar. Daí o déficit endêmico de moeda e a migração em massa para uma cultura de débito. De acordo com Guerrero, o dinheiro depreciava tão rapidamente, que o papel para imprimi-lo tinha um valor maior do que o que as notas podiam comprar.

Devido a escassez de dinheiro físico, as retiradas bancárias diárias estavam geralmente limitadas entre 500 e 2.000 bolívares – cerca de 15 a 61 centavos de dólar, na época. Todos os dias as pessoas faziam fila nos bancos para conseguir o pouco dinheiro que era possível. Elas costumavam manter várias contas bancárias e trocavam informações sobra quais bancos tinham mais dinheiro disponível em um determinado dia.

Devido a escassez de dinheiro físico, as retiradas bancárias diárias estavam geralmente limitadas entre 500 e 2.000 bolívares – cerca de 15 a 61 centavos de dólar. Todos os dias as pessoas faziam fila nos bancos para conseguir o pouco dinheiro que era possível.

A falta de dinheiro em mãos também gerava outras consequências. Segundo os moradores locais, o número de táxis nas ruas havia diminuído drasticamente, visto que as pessoas não tinham dinheiro para pagar pelas corridas – e a maior parte da frota de táxis do país não estava equipada com leitores de cartão de débito. Gorjetas para manobristas de estacionamento, funcionários de hotéis e outros serviços praticamente desapareceram, embora os clientes de restaurantes que pagavam por débito eram incentivados a adicionar gorjeta no total das contas.

Enfim, essa situação relatada em fevereiro permanece até hoje.

Conclusão

A foto retrata a ação de criminosos, que invadiram e depredaram uma agência bancária na cidade de Mérida, e posteriormente, ao se depararem apenas com notas antigas e sem valor, as espalharam por ruas próximas da referida agência.

Portanto, a foto não retrata a ação da população venezuelana descartando notas de dinheiro vigentes no país. Devido a escassez de notas de bolívares “soberanos” nos bancos, a Venezuela se tornou um dos poucos países do mundo onde o assalto a agências bancárias se tornou um crime inútil.

Jornalista e colaborador do site de verificação de fatos E-farsas entre janeiro de 2019 e dezembro de 2020. Entre junho de 2015 e abril de 2018, trabalhei como redator do blog AssombradO.com.br, além de roteirista do canal AssombradO, no YouTube, onde desmistificava todos os tipos de engodos pseudocientíficos e casos supostamente sobrenaturais.

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