Antigo vídeo mostra mulheres alimentando crianças como se fossem animais na Indochina Francesa?
Diariamente são publicadas diversas dúvidas e sugestões em nosso grupo no Facebook. Recentemente, entre elas, havia uma sugestão de um usuário para que fizéssemos uma matéria sobre um determinado vídeo, aparentemente bem antigo. Tanto o usuário quanto a publicação compartilhada por ele, datada de 16 de agosto de 2019, descrevia o vídeo como se crianças estivessem sendo alimentadas como animais. Como se as duas mulheres que aparecem no vídeo estivessem jogando comida para as crianças.
Nenhuma data ou localização foi mencionada. A única citação mais relevante era genérica, uma vez que se dizia tratar do “período colonial”. Ainda assim, o vídeo já foi assistido mais de 110 mil vezes e obteve mais de 3 mil compartilhamentos!
Confira abaixo a sugestão publicada pelo usuário:
Assim como o referido vídeo:
Entretanto, será que o vídeo é realmente verdadeiro? Ele é tão antigo quanto aparenta ser? As mulheres que aparecem no vídeo estão realmente alimentando as crianças como se fossem animais? Qual a realidade por trás dele? Descubra agora, aqui, no E-Farsas!
Verdadeiro ou Falso?
Fora de Contexto! Embora o vídeo seja verdadeiro e a filmagem datada da virada do século XIX para o XX, interpretar corretamente a ação registrada não é tão simples quanto se parece. Num primeiro olhar, ainda mais diante da péssima qualidade da gravação, realmente parece que as duas mulheres estariam jogando alimentos para as crianças – alimentando-as como se fossem animais. No entanto, não é bem isso que está acontecendo.
A seguir, vamos explicar direitinho essa história para vocês!
Qual o Nome do Vídeo?
Acredito que não preciso perguntar se vocês notaram a diferença, não é mesmo? Enfim! Guardem bem essa informação sobre os títulos, porque ela será muito importante mais para frente.
Qual a Data Aproximada da Filmagem?
Segundo o site “Catalogue Lumière”, que é dedicado aos primeiros filmes dos irmãos Lumière, a cena foi gravada entre abril de 1899 e março de 1900 (exibida na França em janeiro de 1901) por um experiente operador de câmara chamado Gabriel Veyre. Logo, na verdade, o vídeo é um antigo filme. Apenas um dos 1.428 filmes, que foram gravados entre 1895 e 1905, em diferentes partes do mundo. Aliás, para quem não conhece, os irmãos Auguste e Louis Lumière são frequentemente referidos como os pais do cinema.
Confira novamente o vídeo abaixo, mas com uma qualidade bem superior de imagem:
Ah, caso estranhem o fato do vídeo acima não ter áudio, não se preocupem! O material foi originalmente gravado sem nenhum áudio. Sim, sabemos que havia um áudio no vídeo anterior, mas daqui a pouco explicaremos de onde aquela narração surgiu.
Onde o Vídeo Foi Gravado?
O vídeo foi gravado na chamada Indochina Francesa, mais precisamente em Hanoi, no Vietnã. O “Pagode das Senhoras”, citado no título em francês, é uma estrutura localizada no interior de um templo budista chamado Láng. Este, por sua vez, fica localizado no distrito de Đống Đa.
E como podemos confirmar o local da filmagem? Confira um antigo cartão postal do local, abaixo:
Reparem na construção à esquerda na foto. Foi exatamente ali que a filmagem foi realizada, ou seja, em frente ao “Pagode das Senhoras”, que por sua vez é a construção que a aparece no centro da imagem. Interessante destacar que, tanto nesse quanto em outros cartões postais, existe a presença de inúmeras crianças no local.
Desde aquela época, o templo era considerado uma atração turística e, talvez, aquelas crianças fossem abrigadas pelo templo. Caso não fossem, a presença delas, assim como de adultos, seria justamente devido ao trânsito de turistas pelo local. Diga-se de passagem, até hoje, nos arredores de diversos templos do mundo existe a presença de crianças e adultos, em situação de pobreza, que pedem dinheiro aos turistas.
Também vale ressaltar nesse ponto, que a Indochina Francesa foi parte do Império Colonial Francês. Era o domínio mais rico e mais populoso. Até sua extinção, em 1954, reunia diversas colônias francesas: três países do Sudeste da Ásia, atualmente independentes (Vietnã, Laos e Camboja), além de uma parte do território chinês, situada na atual província de Guangdong.
Quem são as Mulheres que Aparecem no Vídeo?
Ainda de acordo com o site “Catalogue Lumière”, as mulheres vestidas de branco não pessoas anônimas. São a esposa (Blanche Doumer) e uma das filhas (provavelmente Hélène Doumer) do então Governador Geral da Indochina Francesa, Paul Doumer. Ele ocupou esse cargo entre os anos de 1897 e 1902.
Posteriormente, Paul Doumer se tornaria o 14º presidente da França (1931 – 1932). Foi apenas um ano de mandato, visto que ele foi assassinado em 1932, na cidade de Paris.
A Origem do Vídeo: Um Interessante Artigo Sobre o Assunto
Para falar sobre a origem desse vídeo utilizarei como base um artigo intitulado “Memory and History: Early Film, Colonialism and the French Civilising Mission in Indochina” apresentado no Seminário George Rudé, realizado na Universidade de Sidney, na Austrália, no ano de 2010. Ele foi posteriormente publicado no volume 4, de “História e Civilização Francesa”, que por sua vez é um periódico revisado por pares e publicado a cada dois anos, após cada edição do referido seminário.
O artigo possui duas autoras: Barbara Creed e Jeanette Hoorn. Barbara é professora de Estudos de Cinema na Escola de Cultura e Comunicação da Universidade de Melbourne, sendo conhecida por sua crítica cultural. Jeanette é uma historiadora de arte e curadora, que ocupa uma cadeira em Culturas Visuais, também na Universidade de Melbourne.
O texto produzido por elas basicamente explora os temas da memória e da história em relação a alguns dos primeiros filmes de não-ficção colonial que, segundo elas, teriam recebido muito pouco reconhecimento ou análise crítica. Entre esses filmes estava justamente o vídeo que estamos abordando em nosso artigo aqui no E-Farsas.
Um Pouco de História Não Faz Mal a Ninguém
Segundo Barbara e Jeanett, a invenção da imagem em movimento em 1895 mudou a relação entre a representação visual, a memória e a história de uma maneira profunda e duradoura. Esse ano foi particularmente notável, na França, devido a dois eventos: o estabelecimento da missão civilizadora como política governamental oficial pela Terceira República, e a invenção de Louis Lumière da câmera cinematográfica portátil juntamente com o surgimento dos primeiros espectadores de obras cinematográficas.
Num primeiro momento estes dois desenvolvimentos podem parecer desconectados. Contudo, na década de 1910, o novo cinema se tornaria um poderoso aliado na representação e disseminação dos ideais e resultados da missão civilizadora francesa, assim como nos empreendimentos coloniais de todo o poder imperial.
A Missão Civilizadora
A opinião de uma professora norte-americana chamada Alice L. Conklin é bem contundente nesse sentido. Num livro de sua autoria, chamado “Mission to Civilize: The Republican Idea of Empire in France and West Africa, 1895-1930“, publicado em 1997, ela disse:
“Um dos objetivos mais importantes de tais colônias, paralelamente a revitalização da mãe-pátria, foi a ‘evolução’ pacífica dos povos inferiores em direção à civilização.”
Alice definiu a missão civilizadora como uma tentativa de transformar culturas antigas em modernas – com assuntos modernos – de acordo com políticas “formuladas em casa”. No início da década de 1910, por exemplo, o governo francês havia se tornado plenamente consciente do poder do cinema para disseminar os ideais da missão civilizadora no próprio país.
Em seu estudo sobre o cinema colonial (“Colonial Cinema and Imperial France, 1919-1939: White Blind Spots, Male Fantasies, Settler Myths“), publicado em 2001, o autor David Henry Slavin chama a atenção para um documento oficial de 1912 em que o governo afirmava que:
“o filme geográfico… ajuda a ligar as colônias à mãe-pátria… e nos lembra dos franceses se sacrificando por um ideal… O cinema será a melhor agência de emigração do futuro.”
Os “Actualités”
Nem todos os filmes feitos nas primeiras décadas após a invenção da imagem em movimento são tão simples de interpretar. Isso se aplicaria, por exemplo, aos primeiros filmes coloniais de não-ficção, conhecidos como “actualités“, em que os primeiros operadores de câmeras gravaram em viagens por todo o império. Como o próprio nome sugere, esses filmes procuravam capturar momentos reais ou vislumbres de eventos do mundo real.
Embora exista a suspeita de que alguns não tenham sido tão naturais assim ou foram até mesmo encenados, esse gênero de filme normalmente retratava uma cena com pessoas reais, sem cenários, figurinos, diálogos escritos ou efeitos sonoros criados. Os “actualités” basicamente tentavam recriar a sensação de “estar no local”, com tanta fidelidade ao fato quanto a situação permitia. Eram filmes bem curtos – com menos de sessenta segundos – e não eram editados. Portanto, eles não estavam bem alinhados com a tal missão civilizadora. Isso aconteceu somente alguns anos depois mediante documentários um pouco mais extensos de outros cineastas.
Em 1895, os irmãos Lumière enviaram cinegrafistas ao norte da África e à Indochina para trazer de volta imagens do mundo. Eles procuravam lugares em que a literatura de viagem havia se tornado popular. Eles também queriam retratar cenas exóticas. Muitas dos primeiros actualités coloniais, filmadas entre 1895 e 1900, ofereciam imagens do que a modernidade ainda não havia alterado: estranhos exóticos, povos primitivos, vida rural, trajes tradicionais e rituais, danças e cerimônias.
Diga-se de passagem, o termo “actualités” foi cunhado pelos irmãos Lumière.
As Coletâneas Modernas dos “Actualités”
O vídeo que estamos abordando neste artigo é um “actualité“. Originalmente, ele não tinha qualquer diálogo ou trilha sonora. Então, vocês podem perguntar, de onde surgiu aquela narração que ouvimos anteriormente? Para responder a essa pergunta, vamos voltar rapidamente no tempo.
Em 1996 foi lançada uma coletânea de 85 “actualités” dos irmãos Lumière. Apenas um pequena fração dos 1.428 “actualités” produzidos entre 1895 e 1905. Essa coleção foi chamada de “The Lumière Brothers’ First Films” (“Os Primeiros Filmes dos Irmãos Lumière”). Inicialmente, ela foi lançada em VHS (1996) e depois em DVD (1998). Atualmente, no entanto, há um blu-ray chamado “LUMIÈRE!” (2015), onde mais de 100 “actualités” foram restaurados em 4K. No Brasil, essa nova versão é chamada de “Lumière! A Aventura Começa“.
Aquele segundo vídeo que publicamos anteriormente faz parte dessa nova coleção, por isso a qualidade superior de imagem.
Tanto na versão em DVD quanto na versão em Blu-ray foram adicionadas duas narrações para indicar o que estamos vendo diante dos nos olhos. Essas narrações não existiam originalmente, ou seja, durante quase 100 anos as pessoas tinham contato com os “actualités” sem qualquer diálogo embutido. A narração, em francês, foi realizada por Thierry Frémaux, diretor do Instituto Lumière, na França. Já a narração em inglês é do diretor francês Bertrand Tavernier.
Parece Algo Maravilhoso, Mas…
Tudo parece incrível, mas existem dois graves problemas:
1) A narração em inglês do que acontece durante os “actualités” (incluindo o vídeo/filme abordado neste artigo), parte do ponto de vista de Bertrand, mas não necessariamente reflete a realidade contextual de cada um dos filmes. Bertrand faz apenas uma descrição básica e superficial, e não se aprofunda no contexto real de cada filme. Além disso, há pontos que existe uma certa dose de fantasia, repletos de adjetivos e floreios.
2) A tradução oficial do título original do vídeo/filme abordado neste artigo, do francês para o inglês, é péssima. A tradução tirou completamente o título do seu contexto original. Isso porque “sapèques“, em francês, não deveria ter sido traduzido como “arroz” (“rice“, em inglês). Sequer significa a mesma coisa.
A palavra “sapèque” se refere a uma antiga moeda utilizada na Indochina Francesa. Era uma peça pequena e redonda, de zinco ou latão, que tinha um buraco quadrado no meio. Para facilitar o transporte, as “sapèques” eram enfileiradas num cordão em diferentes quantidades. Havia cordões com 100, 500, 1000, 2000 ou até 5000 sapèques. Portanto, “sapéques” eram moedas, não grãos de arroz.
Um Valor Praticamente Irrisório
As “sapèques” tinham um valor irrisório. Eis o que Régis Antoine, autor do livro “L’Histoire curieuse des monnaies coloniales” (1986), disse sobre tais moedas:
“(…) inconvenientes, sempre amarradas no meio em pesados rosários, o cordão se partia de vez em quando, espalhando-as no chão, então tínhamos que pegar uma por uma, cerca de 600 dessas pequenas anilhas para juntar tão somente o valor de 18 sous franceses“
Vale ressaltar nesse ponto que um “sou” francês é um termo obsoleto desde 1795. De qualquer forma, isso sobreviveu ao longo dos séculos como uma espécie de gíria e simboliza o equivalente a 1/20 de um franco francês. Logo, teoricamente, 600 sapèques valiam menos que 1 franco francês.
Um Ótimo Comentário sobre o Colonialismo em Cinquenta Segundos?
O filme “Enfants annamites ramassant des sapèques devant la Pagode des Dames” foi inicialmente retratado como se duas mulheres europeias estivessem em pé, numa varanda, se divertindo ao jogar o que parece ser arroz para um grupo de crianças, que disputam os grãos entre si. Bertrand Tavernier descreve esta realidade como “um grande comentário sobre o colonialismo em cinquenta segundos”, “um filme muito forte, um documento muito poderoso”.
Assim sendo, o filme parece representar o pior da colonização. Duas mulheres ricas jogando petiscos aos filhos de uma nação inferior e primitiva. Nesse contexto a cena cria, portanto, uma forte impressão de desigualdade. Tavernier descreve “as duas mulheres de branco”, “as crianças rastejando no chão”. Há também uma mulher da Indochina, com um bebê no quadril, que se inclina para pegar os “objetos”.
Não é Bem Assim…
Entretanto, num determinado ponto, Bertrand Tavernier diz que “as mulheres estão jogando grãos”, faz uma pausa abrupta, e diz “sapèque”. Um visão mais aproximada da cena mostra claramente que as mulheres puxando moedas ao longo de um cordão. Elas estão se divertindo, estão sorrindo. Uma desce entre as crianças, enquanto a outra olha diretamente para a câmera e sorri. Há um forte senso de diversão no ar.
Diga-se de passagem, o tamanho dos objetos lançados ao ar sequer é compatível com grãos de arroz.
Portanto, se as mulheres estão jogando moedas, em vez de grãos de arroz, o sentido é completamente alterado.
O Antigo e Duradouro Costume Francês de Jogar Doces e Moedas para Crianças
Nesse ponto muitos podem dizer que, mesmo não sendo arroz, ainda assim seria uma cena humilhante. Contudo, também não é bem assim, visto que a cena também dá origem a uma outra interpretação – um antigo costume francês de jogar dragées, ou doces e, às vezes, moedas, para crianças durante celebrações especiais. Lembrem-se que Blanche Doumer e sua filha não estão bem numa varanda, mas no interior de um templo budista. Tal templo budista era considerado um ponto turístico e, normalmente, já havia crianças e adultos mais humildes no local.
Esse antigo hábito, que remonta há séculos, simboliza prosperidade, fertilidade e boa sorte. Nos tempos modernos, a prática de jogar arroz praticamente substituiu a antiga prática de jogar doces e moedas. Atualmente, no entanto, em algumas regiões do Sul da França, doces e moedas, simbolizando a fertilidade, ainda são jogadas para crianças que esperam na porta das igrejas.
Portanto, tendo esse contexto em mente, vemos como o filme dos irmãos Lumière pode ter registrado um momento de interação cultural – um antigo costume francês reencenado numa cultura colonial. Uma vez que estamos diante de um cenário de desigualdade colonial, e poucos possuem esse conhecimento, é difícil para muitos entenderem essa forte possibilidade.
Conclusão
Os primeiros filmes de não-ficção da Indochina, mesmo após mais de um século, ainda mantêm uma sensação de proximidade e frescor, que continuam a desafiar a imaginação de muitas pessoas ao redor mundo. O próprio artigo de Barbara e Jeanett aborda alguns outros filmes do gênero “actualité”, mas que não iremos comentar aqui para não perdermos nosso foco. Uma vez que eles não era editados e desprovidos de comentários, nosso modo de interpretá-los tende a se basear numa perspectiva pós-moderna. Em muitos casos não há uma única e singular visão. O espectador é encorajado a reagir, de forma particular, ao que vê.
Especificamente em relação ao filme “Enfants annamites ramassant des sapèques devant la Pagode des Dames”, no entanto, os aspectos positivos e festivos da cena não podem ser negligenciados. Também não podemos negligenciar o fato que a tradução do título, do francês para o inglês, mudou completamente o contexto e a forma como vemos o filme. Na verdade, as mulheres não jogam arroz para crianças, mas moedas. Embora essas moedas tenham um valor muito baixo, dizer que as duas senhoras estão alimentando crianças feito pombos descontextualiza totalmente as poucas informações originais que temos do filme. Assim sendo, classificamos o caso como “Fora de Contexto”.
Quando Bertrand Tavernier diz “grãos” (ele sequer diz “arroz”), pausa, e diz “sapèque”, essa pausa funciona quase como um “quer dizer”. A visão mais ácida e crítica de Bertrand talvez retrate a cena como se migalhas fossem atiradas aos nativos, mas desconsidera a realidade e todo um contexto cultural que pode ser muito mais amplo. A narração, querendo ou não, acaba mudando o propósito dos “actualités” ao inserir novos elementos, onde anteriormente só havia arte. Um tingimento que só serve ao propósito e interesse de quem possui o controle da narrativa. Um exemplo claro que a arte não serve apenas para nos fazer refletir, também pode ser utilizada para desinformar.