Bolinhos feitos na Turquia contêm comprimidos que causam paralisia?
Será verdade que bolinhos da marca turca “Luppo” conteriam comprimidos que causam paralisia? Tais bolinhos estariam sendo vendidos aqui no Brasil? Bem, essas são algumas das alegações que vêm circulando nas redes sociais brasileiras desde o início de novembro de 2019.
Diversos usuários estão compartilhando um determinado vídeo, onde há vários pacotes individuais desses bolinhos e, “aleatoriamente”, uma pessoa (somente as mãos dessa pessoa aparecem no vídeo) escolhe um para abrir.
Então, ao abrir a embalagem e partir o bolinho ao meio, com as mãos, essa pessoa “encontra” o que seriam dois “comprimidos” (ou “pílulas”). Segundo diversas publicações, em português, tais supostos comprimidos causariam paralisia, e teriam sido exportados para diversos lugares do mundo, assim como Israel, Itália e, inclusive, o Brasil.
Confiram algumas dessas publicações, que estão circulando no Facebook:
E também o vídeo, que possui apenas 50 segundos de duração:
Para vocês terem uma ideia do poder propagação de toda essa história, uma publicação de um determinado usuário no Facebook obteve mais de 15 mil compartilhamentos! Embora essa publicação tenha sido recentemente deletada, ainda existem outras sendo amplamente replicadas, e que já ultrapassaram os 4 mil compartilhamentos!
Entretanto, será que essa história é verdadeira? Será que bolinhos fabricados na Turquia, da marca “Luppo”, conteriam comprimidos que causam paralisia? Tais bolinhos foram exportados para o Brasil, Israel, Itália ou Estados Unidos? Descubra agora, aqui, no E-Farsas!
Verdadeiro ou Falso?
Falso! Em primeiro lugar, o vídeo não foi gravado no Brasil, ou seja, não mostra produtos da marca “Luppo”, que por ventura estivessem sendo comercializados em nosso país! O idioma que ouvimos no final do vídeo é o Sorani (um dialeto curdo), que por sua vez é falado no Iraque e, principalmente, numa região chamada Curdistão iraquiano. Embora o Curdistão abranja territórios em diversos países (compreendendo partes da Turquia, Irã, Síria e Iraque), tudo indica que o vídeo é oriundo da Região Autônoma Curda, no Iraque.
Em segundo lugar, há um consistente conjunto probatório sugerindo, que o vídeo retrata uma ação deliberada! É perfeitamente plausível que alguém tenha adulterado tais bolinhos, de forma intencional, como parte de uma campanha de boicote a produtos turcos! A seguir, vamos explicar direitinho todo esse caso para vocês!
Como Tudo Isso Começou a Circular nas Redes Sociais?
Antes de começarmos é importante elogiarmos o trabalho de investigação conduzido pelo site de checagem turco “Teyit”, que fez uma pesquisa bem completa sobre esse caso. Aliás, boa parte do que publicaremos é oriundo desse importante trabalho realizado pelo site.
Segundo o “Teyit”, toda essa história teria começado num vídeo publicado no dia 28 de outubro de 2019, no YouTube! Esse vídeo está no ar até hoje e já foi visualizado mais de 29 mil vezes. Confira-o abaixo:
Assim sendo, teria sido através desse vídeo no YouTube, que inúmeras publicações teriam começado a surgir no Facebook. E, internacionalmente falando, a propagação do vídeo foi muito mais caótica. Numa determinada publicação, de um usuário turco, esse vídeo já foi assistido mais de 800 mil vezes e obteve mais de 33 mil compartilhamentos (arquivo).
Já numa outra publicação, de uma usuária israelense, mas que alegadamente mora nos Estados Unidos, o vídeo já foi assistido cerca de 3 milhões de vezes e obteve mais de 72 mil compartilhamentos (arquivo)!
Essa usuária chegou a dizer na descrição do vídeo, que teria apenas “copiado e colado” o que leu, mas que não era responsável por nenhum vídeo falso. Contudo, esse é um comportamento totalmente hipócrita, visto que, embora a pessoa, a princípio, não saiba se é o vídeo é verdadeiro ou falso, ainda assim o dissemina como se fosse verdadeiro.
Alguns sites na internet, tanto de Israel quanto da Turquia, também “ajudaram”, porém no sentido negativo, a disseminar essa história. Enfim, fato é que, em questão de dias, essa história chegou a diversos países, assim como o México e, é claro, como era de se imaginar, ao Brasil.
Determinando o Local de Gravação do Vídeo
Existem alguns pontos importantes que nos levam a crer, que muito provavelmente o vídeo teria sido gravado na Região Autônoma Curda, no Iraque. Vamos mencionar alguns deles:
- A empresa turca “Şölen” é a fabricante responsável pelo produto que aparece no vídeo, mas ele não é comercializado na Turquia. Trata-se tão somente de um produto de exportação;
- Conforme mencionamos anteriormente, o idioma que ouvimos no final do vídeo é o Sorani (um dialeto curdo), que por sua vez é falado no Iraque e, principalmente, no chamado Curdistão iraquiano;
- No vídeo também podemos ver um freezer contendo frangos congelados da marca turca “As Piliç”. Para quem não sabe, o Iraque é um dos maiores importadores de frango do mundo, e um dos principais mercados de exportação da Turquia neste segmento.
É bom deixar claro, que embora não possamos cravar com absoluta certeza, que o vídeo tenha sido gravado na Região Autônoma Curda, no Iraque, a chance do vídeo ter sido gravado no Brasil, Israel, Estados Unidos, México ou Itália, por exemplo, é zero. Portanto, não tem cabimento algum disseminar que o vídeo teria sido gravado em nosso país.
A Análise Fornecida pela Fabricante do Produto
O site “Teyit” compartilhou a mais recente análise laboratorial do bolinho fabricado pela “Şölen”, que foi enviada pela própria fabricante. O nome comercial do produto é “Luppo Choco Coconut Cake“, que consiste basicamente num mero bolinho com cobertura de chocolate branco e preto, e recheio de creme de coco.
Segundo o site “Teyit”, os processos de fabricação de produtos alimentícios passam por inspeção interna e independente. Os resultados provenientes de um laboratório de auditores independentes não revelaram nenhuma anormalidade no produto. Além disso, cada produto de exportação é verificado novamente na alfândega do país de destino. Em outras palavras, ainda que comprimidos fossem maliciosamente adicionados aos produtos, o mais provável era que isso ocorresse em território iraquiano.
Para completar, um porta-voz do Ministério da Saúde do Governo Regional do Curdistão disse que não havia sido encontrado nenhum comprimido ou pílulas nos produtos. Logo, muito provavelmente a contaminação, caso fosse confirmada (algo que não ocorreu até o fechamento deste artigo), teria ocorrido posteriormente a venda do produto no mercado local.
Onde o Produto é Fabricado?
Os Indícios Apontando uma Manipulação Intencional do Produto Por Parte de Terceiros
Existem ao menos dois indícios apontando, que muito provavelmente houve uma manipulação intencional do produto por terceiros, ou seja, uma ou mais pessoas teriam forjado a presença dos supostos “comprimidos” dentro do bolinho.
O primeiro indício é que a pessoa no vídeo abre somente um único pacote. Existem vários pacotes na sua frente, mas é mostrado o conteúdo de somente um deles. Por que ele não abriu as demais embalagens? Além disso, quem garante que a embalagem não tivesse sido previamente aberta, o produto sido adulterado, e posteriormente fechada? Não temos nenhuma garantia sobre isso no vídeo.
O segundo indício é que o bolinho apresenta estranhos afundamentos, que mais parecem ser buracos, na parte da cobertura. Segundo o site “Teyit”, os supostos “comprimidos” aparecem justamente na direção de tais buracos.
Os Supostos “Comprimidos” Foram Analisados? Onde Estão as Vítimas de Tais “Comprimidos”?
Nenhuma publicação aponta qualquer análise dos supostos “comprimidos”, e muito menos aponta o nome de uma eventual vítima de um bolinho supostamente contaminado. Isso é mais um indicativo que o vídeo tem um caráter difamatório e não representa a realidade.
A Checagem por Parte do Site Norte-Americano “Snopes”
O site de verificação norte-americano “Snopes” também teve acesso a documentos fornecidos pela “Şölen”. Segundo o site, os processos de produção, as medidas de proteção contra contaminações e certificações de segurança (1 | 2 | 3 | 4 | 5) das instalações da empresa mostram que é efetivamente impossível, que um objeto estranho, assim como os supostos “comprimidos” mostrados no vídeo, fossem colocados no produto durante sua fabricação.
É interessante destacar ainda, que os certificados foram emitidos pela empresa suíça SGS, líder mundial em inspeção, verificação, testes e certificações.
Num extenso e detalhado email enviado ao “Snopes”, um porta-voz da “Şölen” chamou o vídeo de “enganoso, infundado e falso”. Segundo a empresa, “o vídeo foi inteiramente produzido com um caráter difamatório”. No email foi apontado, que entre os vários sistemas de filtragem utilizados na produção e processamento da massa, creme, chocolate e demais componentes dos diversos bolinhos da marca “Luppo”, havia um que bloqueava qualquer partícula com altura ou largura maior que 700 mícrons (0,7 milímetros). Os supostos “comprimidos” mostrados no vídeo são claramente maiores que essas dimensões e, portanto, não poderiam ter sido adicionados ao produto enquanto estava sendo fabricado.
O porta-voz também observou que o processo de produção é totalmente automatizado, o que significa que os componentes de cada bolinho não são “tocados por mãos humanas” até que cada produto esteja em sua respectiva embalagem. Para completar, o porta-voz também disse que a empresa já estava adotando as medidas legais contra os responsáveis por disseminar o vídeo.
Tudo Não Passou de uma Sórdida Estratégia Política?
Jornalistas que trabalham na Região Autônoma Curda, no Iraque, teriam sido ouvidos pelo site “Teyit”. Segundo tais jornalistas, após a “Operação Nascente da Paz” (também chamada de “Operação Primavera da Paz”), foi iniciada uma tentativa de boicote contra produtos turcos no norte do Iraque. Portanto, há quem acredite que o vídeo teria sido produzido como parte dessa estratégia de boicote. De certa forma, isso é perfeitamente plausível.
Vale ressaltar neste ponto, que a “Operação Nascente da Paz” começou no dia 9 de outubro de 2019, e teria como objetivo, segundo a Turquia, retirar as milícias curdas da fronteira turca e estabelecer no nordeste do país árabe uma faixa segura para receber os milhares de refugiados sírios, que hoje permanecem em território turco. Enfim, não iremos discutir detalhes essa ação militar, porque não é o foco de nosso artigo.
A Opinião de uma Engenheira de Alimentos Consultada pelo Site “Teyit” e um Relatório da OMS
Segundo uma engenheira de alimentos chamada Petek Ataman, se um comprimido fosse adicionado ao produto, ele derreteria ou se deformaria durante o processo de cozimento. E, embora cada embalagem não seja verificada individualmente, existem diversos mecanismos de controle, onde amostras são selecionadas e analisadas em laboratório.
O site “Teyit” também apontou um relatório da Organização Mundial da Saúde intitulado “Terrorist threats to food : guidance for establishing and strengthening prevention and response systems“, de 2003, onde é mencionado, que as principais substâncias ativas usadas na contaminação deliberada de alimentos são produtos químicos tóxicos, patógenos microbiológicos, metais pesados, pesticidas e substâncias radionucleares. Nada de comprimidos que causem paralisia.
Uma Consulta ao Departamento de Narcóticos da Polícia de Ancara, na Turquia
A equipe do site “Teyit” entrou em contato com o Departamento de Narcóticos da Polícia de Ancara, na Turquia. Como resposta, um oficial teria mencionado que “comprimidos ilegais” podiam ser produzidos em diferentes formatos e cores, além de serem transportados de maneiras inimagináveis. Contudo, era improvável que tais supostos “comprimidos” tivessem sido adicionados durante o processo de fabricação do produto, porque isso alteraria suas propriedades químicas. Resumindo? Tais supostos “comprimidos” perderiam o efeito desejado/planejado.
O oficial também teria alegado que embalagens falsas, assim como o própria falsificação do produto, também poderia ser facilmente criadas.
Conclusão
Falso! Neste artigo fornecemos um sólido conjunto probatório mostrando, primeiramente, que o vídeo não foi gravado no Brasil! Muito provavelmente, o vídeo teria partido da Região Autônoma Curda, no Iraque. Em segundo lugar, também apresentamos uma série de razões apontando, que a possibilidade de inserção de “comprimidos” ou “pílulas” aos bolinhos da marca Luppo, apresentados no vídeo, é totalmente infundada. Além do processo de fabricação ser automatizado, e não haver contato humano até o produto estar devidamente embalado, existem diversos mecanismos de segurança que impediriam a presença de tais “comprimidos” ou “pílulas” aos bolinhos.
Nenhuma publicação que disseminou esse vídeo de maneira alarmista apresentou quaisquer provas, que tais elementos realmente se tratam de “comprimidos” ou “pílulas”, e sequer apresentou quaisquer eventuais vítimas de supostos bolinhos contaminados. Diga-se de passagem, nenhuma autoridade, seja da Turquia, da Região Autônoma Curda ou de qualquer outro país, confirmou a presença de tais elementos nos produtos da marca Luppo. O site “Boatos.org”, por exemplo, chegou a atualizar uma postagem, que também desmentiu essa alegação, com o comentário de uma leitora apontando para a possibilidade de tais elementos serem somente grânulos de sorbato de potássio ou algum outro conservante. Nada de “comprimidos” que causem paralisia.
Para completar, jornalistas que trabalham na Região Autônoma Curda teriam alegado, que havia sido iniciada uma tentativa de boicote contra produtos turcos na região. Isso teria ocorrido logo após o lançamento de uma ofensiva militar da Turquia, no norte da Síria, no dia 9 de outubro de 2019, sendo que o vídeo em questão surgiu apenas no fim do mês de outubro. Portanto, há quem acredite que o vídeo tenha sido produzido como parte dessa estratégia de boicote. De certa forma, isso é perfeitamente plausível, muito embora seja uma sórdida estratégia política.