Será verdade que o gambá resiste a 80 picadas de cascavel ou cobra coral?
Circula há algum tempo nas redes sociais, um texto altamente peculiar (com algumas variantes) sobre o gambá — um mamífero marsupial que habita desde o sul dos Estados Unidos até a América do Sul.
Eis o que foi mencionado numa das versões desse texto, cuja publicação já obteve mais de 10 mil compartilhamentos desde 31 de agosto de 2020 (arquivo):
“O gambá é capaz de suportar até 80 picadas de Cascavel, e come jararaca como se fosse batata frita. Graças a ele existe o antídoto contra a picada de cobras venenosas. Ele pode ser feio, mas você também é, e ninguém fica te batendo por isso”
Eis o que foi mencionado numa outra versão desse texto disseminado no Twitter, também no dia 31 de agosto deste ano, mas que já obteve mais de 27 mil retuítes (arquivo):
“O gambá é capaz de suportar até 80 picadas de Cascavel ou Coral, e come jararaca como se fosse batata frita. Graças a ele existe o antídoto contra a picada de cobras venenosas. Por favor, não os matem! Ele pode ser feio, mas você também é e ninguém fica te batendo por isso“
Entretanto, será que essas informações são verdadeiras ou falsas? Descubra agora, aqui, no E-Farsas!
Uma História que Circula com Muita Intensidade Desde Fevereiro de 2020
Nenhuma das viralizações recentes se comparam ao que ocorreu em fevereiro deste ano, quando uma única publicação no Facebook obteve mais de 110 mil compartilhamentos (arquivo)!
Portanto, tudo o que vemos hoje em dia são meras réplicas que foram disseminadas ao longo do tempo.
Verdadeiro ou Falso?
Falso! Todas as versões que encontramos desse texto são altamente desinformativas!
Primeiramente, desde o século passado o soro antiofídico é produzido a partir de cavalos, ou seja, nada de gambás. Em segundo lugar, um estudo realizado em 1976 demonstrou que o gambá-da-virgínia, por exemplo, não é tão resistente assim contra o veneno da cobra coral (denominação comum a várias serpentes da família Elapidae).
Em terceiro e último lugar, embora esse mesmo estudo tenha mostrado que o gambá-da-virgínia era consideravelmente resistente ao veneno de cascavéis, não há nenhum estudo apontando que o gambá seja resistente até 80 picadas. Aliás, isso é completamente exagerado por uma série de fatores.
A seguir vamos, explicar direitinho essa história para vocês.
A Resistência do Gambá ao Veneno das Cascavéis e o Péssimo Desempenho em Relação ao Veneno da Cobra Coral
Um dos melhores estudos, senão o melhor estudo que temos sobre a resistência do gambá ao veneno de cobras, chama-se “Resistance of the opossum (Didelphis virginiana) to envenomation by snakes of the family Crotalidae“.
Esse é um estudo bem longo, mas em nenhum momento é mencionado que o gambá “seja resistente a 80 picadas de cobra”. Nele, os cientistas avaliaram a resistência, especificamente do chamado gambá-da-virgínia (Didelphis virginiana) — uma espécie habita a América do Norte — contra doze espécies de cobra de quatro famílias: a Crotalidae (atualmente não é mais uma família, mas uma sub-família da Viperidae), a Hydrophiidae, a Viperidae, e a Elapidae.
Basicamente, eles compararam essa resistência do gambá-da-virgínia em relação a doses consideradas médias e letais de veneno em cães e macacos (“mamíferos suscetíveis”), que foram obtidas num estudo anterior.
E como os gambás foram envenenados? Por uma única picada de cobra no músculo bíceps femoral da pata traseira esquerda ou por administração intravenosa/intramuscular, entre 4 a 60 vezes a dose de veneno sabidamente letal para cães e macacos. Tudo bem por aqui? Estão conseguindo entender?
Vamos continuar.
Os Resultados do Estudo Envolvendo Cobras da Antiga Família Crotalidae
O gambá-da-virgínia se saiu muito bem contra o veneno de cobras da antiga família Crotalidae (Crotalus adamanteus, Crotalus atrox, Agkistrodon contortrix, Agkistrodon piscivorus, Agkistrodon h. brevicaudata e Agkistrodon bilineatus). Entre as espécies estava a cascavel-diamante-ocidental, a cascavel-diamante-oriental, entre outras cascavéis.
Enfim, num dos testes envolvendo a cascavel-diamante-oriental foram inoculados de forma intramuscular cerca de 15 mg/kg e posteriormente cerca de 105,3 de maneira intravenosa. Isso representa cerca de 60 vezes a dose letal de 1,58 mg/kg para cães e macacos.
Alguns outros testes envolveram uma picada de cobra (o gambá estava anestesiado durante a picada) seguida da inoculação de veneno de forma intramuscular e intravenosa em quantidades diferentes. Já outros testes envolveram somente um única picada de cobra. Em todos os testes envolvendo essas seis espécies da antiga família Crotalidae, os gambás sobreviveram.
Os gambás não receberam medicamentos ou qualquer tratamento após o envenenamento. Os sobreviventes foram observados de perto quanto a sinais clínicos de toxicidade por 30 dias. No final desse período, eles foram soltos na natureza ou mantidos como parte da colônia, mas não foram usados para estudos de envenenamento posteriores.
Os Resultados do Estudos Envolvendo Cobras das Famílias Hydrophiidae, a Viperidae, e a Elapidae
Já os gambás que foram inoculados ou mordidos uma única vez por cobras das famílias Hydrophiidae, Viperidae, e Elapidae não se mostraram nada resistentes e não tiveram nenhuma chance contra uma única picada. Nenhum gambá sobreviveu. Fizeram parte do estudo os venenos das seguintes espécies: Naja naja, Naja naja atra, Naja nivea, Micrurus fulvius, Bitis arietans e Lauticaudata semifasciata.
Em relação as espécies Naja naja, Naja naja atra e Bitis arietans, os gambás morreram entre 45 minutos e 24 horas após uma única picada. Em relação a Micrurus fulvius, popularmente conhecida como cobra coral, foram inoculados 1,70 mg/kg de veneno, de forma intravenosa, sendo que a dose letal considerada era de 0,34 mg/kg. O resultado? O gambá morreu após 6 horas.
Os Detalhes Interessantes e os Problemas do Estudo
Embora seja interessante, o estudo é problemático. Isso porque os resultados foram considerados apenas como descobertas preliminares e envolviam poucos animais. Naquela época, esperava-se que essas descobertas estimulassem outros cientistas a prosseguirem no estudo do mecanismo de proteção do gambá com o possível objetivo de aplicação em humanos.
Um detalhe interessante, no entanto, é que não foram observados sinais de hemorragia, inchaço ou necrose do tecido deixados por uma única picada das espécies testadas da antiga família Crotalidae. O mecanismo dessa resistência era desconhecido, mas a elucidação poderia ter implicações significativas no tratamento de picadas de cobras em seres humanos. Por outro lado, não houve nenhum teste para demonstrar essa resistência a mais picadas, quanto mais a 80 picadas!
Portanto, embora o gambá aparentemente seja realmente resistente ao veneno de cascavéis, não dá para dizer que o gambá seja resistente a 80 picadas de uma cascavel. Essa quantidade expressiva de picadas poderia causar hemorragias, e uma série de outras complicações ao animal, diferentemente de uma única picada, que poderiam levá-lo a óbito. Isso ficou claro?
O Gambá Não Tem Nenhuma Relação com o Soro Antiofídico Utilizado Desde o Século Passado
Agora que vocês entenderam essa situação, vamos falar sobre a relação do gambá com o soro antiofídico.
Para isso consultamos o Dr. Cláudio Machado, PhD em Medicina Tropical no IOC-Fiocruz, e biólogo do Instituto Vital Brazil, exercendo o cargo de assessor da Diretoria Científica e vice-coordenador da Comissão de Ética no Uso de Animais do referido instituto.
Além disso, Cláudio é o responsável pelo perfil “Papo de Cobra”, no Twitter, e um canal de mesmo nome no YouTube, que possui mais de 39 mil inscritos!
Eis o que ele nos falou:
“O soro antiofídico não tem nada a ver com o gambá. O soro antiofídico é produzido a partir de cavalos desde o século passado. A técnica foi desenvolvida pelo francês Calmet e consiste em você dar pequenas doses de veneno a um cavalo fazendo com que ele produza anticorpos. O cavalo não é imune ao veneno, mas as doses são pequenas e não o matam. O médico brasileiro Vital Brazil foi quem descobriu que o método do Calmet, embora correto, não poderia gerar um soro universal. No início do século passado, ele descobriu a especialidade do soro, ou seja, o soro produzido pelo cavalo só é eficaz para o acidente causado por aquela cobra que usamos na inoculação“
E de Onde Pode Ter Saído Essa História?
Se tivéssemos que arriscar um palpite, muito provavelmente apostaríamos na má interpretação de uma história que circulou em 2005. Naquela época, foi ventilado que o gambá poderia ser a solução para as mordidas de cobra.
A equipe identificou, então, duas principais proteínas que estariam envolvidas no processo de neutralização: DM43 e DM64. Enquanto a primeira inibe a ação das metaloproteases do veneno, compostos que atuam destruindo algumas proteínas do animal afetado e gerando hemorragia, a segunda age sobre as fosfolipases ou miotoxinas, responsáveis pelo efeito miotóxico, ou seja, pelos transtornos musculares causados à vítima.
Enfim, a equipe esperava determinar, futuramente, a melhor forma de produzir as moléculas e sintetizar um medicamento para o tratamento dos acidentes ofídicos. A produção em larga escala, no entanto, não estava nos planos dos pesquisadores, que pretendiam continuar o estudo verificando a eficiência da DM43 e da DM64 contra patologias como algumas neoplasias e a osteoartrite, que também têm a participação de metaloproteases e/ou fosfolipases.
Portanto, nada de produção de soro antiofídico a partir de gambás.
Um Alerta Importante
O único ponto realmente positivo dessas publicações nas redes sociais é dizer que as pessoas não devem matar os gambás. Por medo ou desinformação, muita gente acaba matando os gambás, mas eles são importantes aliados no controle da população de baratas, ratos e cobras.
Sim, eles comem cobras, conforme vocês podem ver num vídeo do canal “Rei das Serpentes”, no YouTube:
Outro detalhe é que matar gambás é considerado crime ambiental, portanto deixem esses bichinhos em paz, combinado?
Conclusão
Falso! Todas as versões que encontramos desse texto são altamente desinformativas!
Primeiramente, desde o século passado o soro antiofídico é produzido a partir de cavalos, ou seja, nada de gambás. Em segundo lugar, um estudo realizado em 1976 demonstrou que o gambá-da-virgínia, por exemplo, não era tão resistente assim contra o veneno da cobra coral (denominação comum a várias serpentes da família Elapidae).
Em terceiro e último lugar, embora esse mesmo estudo tenha mostrado que o gambá-da-virgínia era consideravelmente resistente ao veneno de cascavéis, não há nenhum estudo apontando que o gambá seja resistente até 80 picadas de cascavéis, quanto mais cobras corais. Aliás, isso é completamente exagerado por uma série de fatores.