Vídeo mostra um lagarto atônito diante do ataque de um louva-a-deus?
Recentemente, recebemos uma sugestão de pauta um tanto quanto emblemática. Isso porque há um pequeno vídeo, que circula desde agosto de 2019 nas redes sociais, no qual é mostrado um lagarto atônito diante do ataque de um louva-a-deus.
De tempos em tempos, esse vídeo viraliza, e uma determinada polêmica é reacendida em torno dele: estaríamos realmente diante de um ataque tão mortal do louva-a-deus a ponto de deixar um lagarto sem reação?
Confira abaixo o tuíte, cujo vídeo já teve quase 10 milhões de visualizações (arquivo):
Assim como o vídeo propriamente dito:
Eis que o narrador diz diante da cena:
“…o lagarto congela, em estado de choque, e o louva-a-deus se aproveita da situação. Ele pode não injetar nenhum veneno, assim como as formigas, mas suas mandíbulas são armas temíveis“
Portanto, o vídeo tenta passar ao espectador a impressão de que estamos diante de uma cena real, ou seja, um flagrante na natureza. Entretanto, será que estamos realmente diante de um flagrante ou a cena foi forjada?
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Verdadeiro ou Falso?
Falso! Tudo indica que estamos diante de uma cena forjada! Tudo aponta para que o lagarto tenha sido mantido preso para facilitar o ataque do louva-a-deus, e impedir sua fuga. Nesse caso, alguém está segurando artificialmente esse lagarto (a mão ou artefato utilizado está camuflado), que acabou sendo devorado vivo pelo louva-a-deus sob condições não naturais.
A acusação é tão séria que fomos atrás de naturalistas, biólogos e divulgadores científicos brasileiros para ter a análise deles dessa situação.
O Vídeo Faz Parte de um Documentário Bem Maior
Antes de continuarmos, é importante ressaltar que esse pequeno vídeo, na verdade, faz parte de um documentário chamado “Mantises – Master of Deception” (“Gottesanbeterinnen – Meister der Tarnung“), que foi lançado em 2018 (1,2).
Vocês podem conferi-lo através de um canal no YouTube chamado “Free High-Quality Documentaries” (a partir de 29:03), que o publicou em novembro de 2018:
Desde então o vídeo já obteve mais de 10 milhões visualizações.
Evidentemente, também fomos atrás dos responsáveis por esse documentário! O resultado? Vocês conferem a partir de agora!
A Análise de Bruno Uehara, Naturalista e Divulgador Científico Brasileiro no Japão!
O Bruno Uehara, naturalista e divulgador científico, responsável pelo perfil “Observações Naturalistas” no Twitter, foi quem nos sugeriu essa pauta.
Isso porque, num recente tuíte que viralizou nas redes sociais, um perfil chamado “Nature is Scary” acrescentou a seguinte legenda: “Nunca subestime seu oponente” (numa tradução literal do inglês para o português). Conforme vocês puderam notar, essa legenda é a mesma utilizada pela usuária que citamos no início deste artigo.
Diante disso, o Bruno rebateu ao dizer: “Nunca subestime os humanos“. Ele também acrescentou uma espécie de “vídeo-resposta” indicando os pontos onde a manipulação teria acontecido. Confira abaixo o referido vídeo:
NEVER underestimate HUMANS. 👇pic.twitter.com/KsUNjnvDvk
— Observações Naturalistas (@ObsNaturalistas) October 11, 2020
Ainda sobre o vídeo, eis o que o Bruno disse:
“A narração diz que ‘o lagarto congela, em choque’ por causa do ataque do louva-a-deus. Assim, eles tentam justificar a falta de reação dele. Isso é absolutamente enganoso, pois as imagens deixaram vazar que o lagarto está sendo segurado, impedido de fugir dali“
A Análise de Otávio Vulcão, Divulgador Científico e Estudante de Graduação em Ciências Biológicas pela Universidade Federal do Pará (UFPA)!
Inicialmente, pedimos a análise do Otávio sobre a situação apresentada no vídeo. Poderíamos realmente dizer que estamos diante de um comportamento não natural por parte do lagarto? Há elementos indicando que a cena foi realmente forjada?
Eis o que ele nos respondeu:
“Sim, há algumas evidências para isso. A primeira é que lagartos, em sua maioria, são animais extremamente ágeis e rápidos. Eles não conseguem manter corridas por longo período de tempo, e recorrem à fuga extremamente veloz para despistar predadores. No vídeo, o animal não faz isso, mesmo estando cara a cara com o predador. É a mesma coisa que você ver um leão na sua frente e ficar parado, quando sabe que recuar é a melhor opção.
Outra evidência é na segunda cena onde o louva-a-deus preda o lagarto. Está bem claro uma espécie de bolsa prendendo o animal à árvore. Ele, inclusive, vira a cabeça para iniciar o comportamento de fuga, mas não consegue“
Além disso, aproveitamos para fazer algumas outras perguntas!
É Possível que um Lagarto Devore um Louva-a-Deus? Se Ele Não Estivesse Sendo Segurado, o Resultado Teria Sido Diferente?
“Quando falamos de ‘quem come quem’ na natureza, muita coisa influencia o resultado. O tamanho é uma delas. Lagartos podem comer louva-a-deus, isso vai depender do tamanho dos dois e quem enxerga quem primeiro. A camuflagem ajuda muito nisso, a exemplo dos camaleões de Madagascar que usam a projeção da língua para capturar presas a uma distância segura.
O mesmo vale pra insetos ou aracnídeos (aranhas, por exemplo), que comem vertebrados como sapos e lagartos. A diferença para o vídeo é que ali o lagarto nem sequer conseguiu fugir ou reagir, porque ele estava preso. O resultado poderia sim ser bem diferente“, disse Otávio.
Vídeos ou Documentários Assim Podem Influenciar Negativamente o Espectador? Uma Pessoa Pode, Por Exemplo, Acabar Matando um Animal por Acreditar que Ele é um Assassino ou Irá Feri-la Caso se Depare com Ele?
“Vejo a questão dos documentários com muita cautela, a depender principalmente do objetivo da produção. Temos exemplos de programas, como os de Sir David Attenborough, que foram extremamente importantes para conhecimento, compreensão e conscientização da importância da biodiversidade. Este tipo de programa teve extremo rigor técnico. As pessoas são muito influenciadas pelo que assistem, e isso influencia muito suas percepções e consequentes atitudes. Muitos mitos e lendas, como os que as serpentem carregam, derivam dessas mídias, demonstrando como é perigoso não transmitir a informação de uma maneira adequeada“, completou.
O Espectador Tem Como Saber se Uma Situação é Armada ou Não? Tem Dicas pra Isso? Nesse caso, Muita Gente não Percebeu esse Detalhe, Sendo que o Documentário é Exibido Até Hoje em TVs da Alemanha e da Bélgica.
“O espectador precisa ter algum grau de ceticismo e crítica. Não crer piamente em uma única fonte de informação, buscar outras a partir de fontes também confiáveis, como divulgadores científicos, matérias de jornais com credibilidade e afins. Minha dica é ver o entorno do ambiente do vídeo. Parece artificial demais? Há algum comportamento estranho? Por exemplo, todo mundo já viu ‘calango’ em casa, creio eu, e notaram como esses animais são rápidos. Generalizações são de fato perigosas, mas servem de ponto de partida para buscar outras informações“, finalizou.
A Análise de César Favacho, Biólogo formado pela Universidade Federal do Pará e Especialista em Louva-a-Deus!
Entramos em contato com César Favacho, biólogo formado pela Uuniversidade Federal do Pará, e especialista em louva-a-deus.
Curiosamente, ele nos disse que já havia sido entrevistado sobre esse caso em agosto do ano passado, quando houve a primeira viralização desse trecho de vídeo nas redes sociais. A entrevista foi concedida para o site da emissora RedeTV!
Segundo César, esse comportamento estranho do lagarto tinha explicação: o animal estava sendo imobilizado para que não escapasse e ficasse à mercê dos ataques do louva-a-deus!
“O lagarto, na verdade, está sendo segurado por alguém. Dá para ver claramente, uma espécie de luva ou uma estrutura segurando pela parte posterior, perto das pernas do lagarto”, esclarece Favacho. Dessa maneira, ele não consegue fugir e o louva-a-deus, meio que tendo aquela oportunidade, ataca. Porém, na natureza isso não ocorre do jeito que o vídeo mostra. Na verdade, o lagarto está se debatendo porque tem alguém segurando ele“, disse.
“Se o louva-a-deus visse um lagarto desse tamanho se aproximando, provavelmente ele iria fugir ou ficar parado até ele passar direito. Eles não tentam atacar assim, de graça. Na natureza (ou até mesmo em cativeiro), o louva-a-deus provavelmente iria desistir de tentar atacar porque eles normalmente não gostam de gastar energia com presas que vão dar muito trabalho“, continuou.
O Louva-a-Deus Não é uma Ameaça aos Seres Humanos!
Curiosamente, o louva-a-deus chega a ser criado como bicho de estimação em alguns países da Europa e nos Estados Unidos. Eles não são venenosos, tampouco perigosos para os seres humanos. Diversos vídeos apresentam o louva-a-deus como se fosse um assassino cruel e implacável, cujas fêmeas devoram a cabeça dos machos após o acasalmento! Contudo, não é bem assim que as coisas funcionam!
“A fêmea realmente pode comer o macho – e algumas fazem isso. Porém, esse comportamento não é tão comum na natureza quanto se pensa. E menos ainda nas regiões tropicais. Esses primeiros registros são feitos mais nas regiões temperadas, onde o louva-a-deus acasala pouco antes do inverno chegar. Nesse período, a quantidade de alimento já está escassa e o macho meio que se doa para a fêmea se alimentar dele e poder depositar os ovos nutridos e sobreviver durante o inverno. Então, elas realmente comem os machos em alguns casos“, completou.
“Eu já criei e reproduzi muitos louva-a-deus e nunca nenhuma fêmea comeu o macho. Então, acredita-se que aqui, na região tropical, isso não ocorra tanto porque a disponibilidade de alimento é maior durante o ano todo e os machos podem acasalar com mais de uma fêmea. Na verdade, o louva-a-deus não é violento e, na minha concepção, nenhum animal pode ser considerado, já que, na verdade, a intenção deles é sobreviver e cumprir o seu papel na natureza“, finalizou.
Entramos em Contato com os Responsáveis pelo Documentário “Mantises – Master of Deception”
Acreditamos que não restam dúvidas sobre a realidade por trás cena que foi exibida no documentário “Mantises – Master of Deception“. Agora, será que os envolvidos na produção sabiam disso o tempo todo? Demos uma oportunidade para eles se pronunciarem sobre o caso.
O Contato com o Studio Hamburg
Primeiramente, entramos em contato com a produtora alemã “Studio Hamburg”, que aparece listada no IMDB como co-produtora do documentário. Nós explicamos toda a situação, assim como as acusações de fraude que recaíam sobre o documentário. Quem nos respondeu por email foi a Birte Zywko, gerente sênior de Vendas Internacionais.
Eis o que ela nos disse (devidamente traduzido para o português):
“Uma vez que somos apenas os distribuidores deste documentário, não podemos fornecer informações sobre o histórico das filmagens. O produtor e cinegrafista faleceu no início de 2020“
De fato, Sigurd Tesche, o diretor do documentário, faleceu em 12 de janeiro de 2020 em Leichlingen, na Alemanha, aos 79 anos. Em vida, Sigurd Tesche participou da produção de inúmeros documentários da natureza, principalmente subaquáticos.
O Contato com a Dra. Beatrix Stoepel, Bióloga, Escritora e Roteirista do Documentário
Tentamos entrar em contato com a Dra. Beatrix Stoepel, que aparece creditada como roteirista do documentário.
Infelizmente, no entanto, não houve nenhum retorno até o fechamento deste artigo. Caso isso aconteça em alguma momento publicaremos uma atualização, combinado?
O Contato com Natali Tesche-Ricciardi, Jornalista de Vida Selvagem e CEO da Tesche-Dokumentarfilm
A empresa Tesche-Dokumentarfilm, aparece como co-produtora desse documentário, e a principal responsável é a Natali Tesche-Ricciardi. Ela aparece creditada como produtora-executiva (CEO) e, além disso, é jornalista e filha de Sigurd Tesche.
Eis o que ela nos respondeu:
“Sempre mantivemos os mais altos padrões éticos em nosso trabalho de produção, de acordo com práticas humanas baseadas na ciência para fotografar nosso belo mundo natural. Qualquer filmagem que compramos de terceiros, incluindo o clipe que você está se referindo de 2009, é escolhida com muito cuidado e não temos razão para acreditar que não foi produzida de acordo com nossos padrões éticos. Meu pai, um amante dos animais, começou esta empresa e fez o trabalho de sua vida capturando criaturas incríveis da terra e o precioso círculo da vida“
Conclusão
Falso! Tudo indica que estamos diante de uma cena forjada! Tudo aponta para que o lagarto tenha sido mantido preso para facilitar o ataque do louva-a-deus, e impedir sua fuga. Nesse caso, alguém está segurando artificialmente esse lagarto (a mão ou artefato utilizado está camuflado), que acabou sendo devorado vivo pelo louva-a-deus sob condições não naturais.
Natali Tesche-Ricciardi, jornalista de vida selvagem e CEO da Tesche-Dokumentarfilm, co-produtora do documentário, alegou que trecho de vídeo foi produzido em 2009 por terceiros, e que teria sido adquirido posteriormente pela produtora. No entanto, ela negou a existência de quaisquer discrepâncias em relação ao que ela chamou de “os mais altos padrões éticos” da empresa. Tentamos contato com Dra. Beatrix Stoepel, bióloga e roteirista do documentário, mas não tivemos nenhuma resposta até o fechamento deste artigo. Em contato com o Studio Hamburg, listado como co-produtor do documentário, a empresa alegou que não podia comentar sobre o histórico de filmagens, porque era responsável somente pela distribuição do material.
Já em contato com naturalistas, biólogos e/ou divulgadores científicos brasileiros, todos aqueles que entramos em contato foram categóricos em afirmar que a cena foi forjada. Ao longo do artigo mostramos a análise de cada um deles e, diante de nossa própria análise do material, não encontramos nenhuma justificava que sustentasse a ocorrência natural do que foi apresentado no vídeo.
Respeitamos, é claro, a memória de Sigurd Tesche e prestamos solidariedade a sua família, mas tais casos (assim como quaisquer outros) não podem ficar impassíveis de checagem.
Jornalista e colaborador do site de verificação de fatos E-farsas entre janeiro de 2019 e dezembro de 2020. Entre junho de 2015 e abril de 2018, trabalhei como redator do blog AssombradO.com.br, além de roteirista do canal AssombradO, no YouTube, onde desmistificava todos os tipos de engodos pseudocientíficos e casos supostamente sobrenaturais.