Homens armados foram presos na Filadélfia tentando infiltrar cédulas falsas?
Provavelmente, você deve ter se deparado com essa notícia em algum lugar! Afinal de contas, diversos sites de notícias brasileiros, a exemplo do UOL, Carta Capital, O Antagonista, Terra Brasil Notícias, Esquerda Diário, Diário do Centro do Mundo, Aventuras na História, entre muitos outros, disseminaram essa história nas últimas 24 horas.
E, nesse meio tempo, aconteceu um fenômeno interessante. A noticia foi utilizada por perfis de apoiadores ou simpatizantes do presidente Jair Bolsonaro para supor uma eventual fraude nas eleições norte-americanas a favor de Joe Biden, assim como foi utilizada por outros perfis ou páginas, ideologicamente opostos ao atual governo, para alegar que os homens, que eram apoiadores de Donald Trump, estavam tentando fraudar a eleição.
E se você acreditou em qualquer uma dessas versões de fraude a favor de um lado ou de outro, você foi enganado! Descubra a realidade por trás dessa caso agora, aqui, no E-Farsas!
A Origem da Confusão
No texto originalmente publicado na noite de 6 de novembro de 2020, era possível ler a seguinte informação:
“Na sexta-feira, o Ministério Público da Filadélfia acusou Joshua Macia, de 42 anos, e Antonio Lamotta, de 61 anos, ambos de Chesapeake, Virgínia, de várias acusações relacionadas ao porte de armas (…) Os promotores dizem que mensagens de texto mostram que os homens estavam preocupados com a contagem de votos, que está acontecendo no Centro de Convenções, e que estão ‘vindo para entregar uma caminhonete cheia de cédulas falsas à Filadélfia’.
‘Em 5 de novembro de 2020, o FBI em Norfolk, Virgínia, recebeu uma denúncia informando que indivíduos estavam saindo de Virginia Beach para a Filadélfia em uma caminhonete Hummer prata, e estavam em posse de armas e munições’, disse a comissária de polícia da Filadélfia, Danielle Outlaw.
Esse alerta foi transmitido para todo o departamento de polícia, inclusive para as centenas de policiais que protegem o Centro de Convenções da Pensilvânia“
Rapidamente, essa informação foi garimpada por uma outra emissora norte-americana, a CNN, que alegou que a KYW-TV era uma de suas afiliadas (1,2).
Acredito que vocês já imaginam o que iria acontecer em seguida, não é mesmo?
A Origem da Confusão no Brasil
A CNN foi, no mínimo, imprudente ao estampar na manchete uma informação dessa natureza e considerada preliminar. Isso porque ninguém realmente sabia se os homens estavam em posse de cédulas falsas ou qualquer material relacionado diretamente as eleições. Não havia sequer sido informado a quantidade de supostas cédulas, por exemplo.
A CNN simplesmente assumiu o risco de divulgar algo que não tinha informações concretas.
Assim sendo, sem realizar nenhuma outra verificação, mas confiando cegamente no que havia sido reverberado pela CNN, o UOL disseminou essa informação altamente problemática. Em primeiro lugar, foi traduzido errado a palavra “truck”, que depende de contexto. Nesse caso não se tratava de um caminhão, mas de uma caminhonete.
E, translation matters, porque ao usar a palavra caminhão, o leitor tem a impressão que, ainda que fosse verdade, estaríamos diante de uma quantidade absurda de cédulas falsas.
A Propagação da Confusão no Brasil
Em seguida, confiando cegamente no UOL, outros sites de notícias direcionaram a narrativa que bem entenderam sobre o caso. Por exemplo, o site “Terra Brasil Notícias” omitiu fortes indícios de que os dois homens poderiam ser apoiadores do presidente Donald Trump, assim como mencionado pelo UOL.
Confira abaixo a diferença entre ambos os textos:
E isso é muito relevante, porque o texto publicado pelo site “Terra Brasil Notícias” serviu de combustível para uma narrativa de fraude nas eleições norte-americanas em grupos bolsonaristas ou de simpatizantes do presidente Jair Bolsonaro nas redes sociais. A narrativa propagada na absoluta maioria desses grupos, páginas ou perfis era de que estava havendo uma fraude a favor de Joe Biden.
Confira um levantamento bem simples realizado pela ferramenta “CrowdTangle”:
Entretanto, de acordo com a ferramenta CrowdTangle”” , o texto publicado pelo site não teve tanta repercussão nas redes sociais.
A Ausência de Errata por Parte da CBS e a Correção Feita pela CNN
A informação sobre uma caminhonete repleta de cédulas falsas simplesmente sumiu da notícia inicialmente propagada pela KYW-TV (CBS Philly).
Reparem no compartivo abaixo, como a informação simplesmente desapareceu do texto sem qualquer aviso sobre isso e cerca de dois minutos após a publicação inicial:
A CNN, por sua vez, atualizou o texto e incluiu uma nota de rodapé onde informava o erro que havia cometido. A versão incorreta da CNN, no entanto, ficou no ar por cerca de 10 horas antes de ser atualizada!
Reparem abaixo na diferença entre o texto original (à direita) e a versão atualizada (à esquerda):
O Que Realmente Aconteceu?
Agora que você sabe que essa narrativa de homens tentando infiltrar cédulas falsas é completamente falsa, vamos mostrar a vocês o que realmente sabemos sobre toda essa história.
De fato, Joshua Macias, 42 anos, e Antonio La Motta, 61 anos, foram detidos na noite da última quinta-feira (5). Eles tinham saído da Virgínia, rumo a Filadélfia, numa caminhonete Hummer, de cor prata, que foi estacionada numa rua próxima ao Centro de Convenções da Pensilvânia, na Filadélfia, local onde estava centralizada a apuração dos votos.
O veículo foi encontrado abandonado por policiais, mas pouco tempo tempo eles abordaram dois homens na rua, que estavam portando armas de fogo sem qualquer permissão válida no Estado da Pensilvânia. La Motta estava portando uma pistola Beretta .40, à vista de todos, e Macias estava com outra escondida em sua jaqueta. Embora Macias tivesse uma permissão concedida pelo Estado da Virgínia, a mesma não era válida na Pensilvânia. Ambas as armas estavam carregadas.
Os dois também disseram que o Hummer pertencia a eles. No interior do veículo, os policiais encontraram um fuzil AR-15 e 160 munições.
De qualquer forma, não há nenhuma informação oficial de que foram encontradas cédulas falsas de votação com os dois homens. Muitos menos que estavam transportando um caminhão de cédulas falsas como foi amplamente divulgado.
Ligação com a QAnon e uma Eventual Ligação com uma Senadora Republicana
Um detalhe pertinente, é que o veículo, de fato, tinha adesivos promovendo a QAnon, uma teoria da conspiração de extrema-direita. Inicialmente, Larry Krasner, Procurador Distrital da Filadélfia, sequer tinha a informação de que os homens eram membros conhecidos de qualquer grupo extremista. Ainda não estava claro o que esses homens pretendiam fazer, mas era possível ter uma ideia, visto que a QAnon já teria sido rotulada pelo FBI como uma “potencial ameaça doméstica terrorista”.
Eis o que disse Jane Roh, porta-voz do Ministério Público da Filadélfia, através de uma nota por email:
“De acordo com nossas informações, neste estágio inicial da investigação, parece que esses indivíduos estavam agindo sob a crença de que ‘cédulas falsas’ estavam sendo contadas no Centro de Convenções – uma alegação totalmente sem fundamento – e essa crença poderia ter sido o motivo pelo qual os levou até a Filadélfia.“
La Motta e Macias foram acusados de portar arma de fogo sem licença e porte de arma em via pública ou propriedade pública. Ambos foram indiciados na sexta-feira à noite, e um juiz fixou uma fiança de US$ 750.000 para cada um deles!
Em companhia de ambos havia uma mulher, cujo nome não foi divulgado, mas que não chegou a ser detida pelos policiais.
Quem é Antonio La Motta?
Segundo o site “The Daily Beast”, postagens no Facebook e Twitter revelam que La Motta é um promotor fervoroso da QAnon, que abraçou as narrativas mais sombrias e anti-semitas da teoria da conspiração, que por sua vez é intimamente ligada a alguns grupos de apoiadores do presidente Donald Trump.
La Motta também se autointitula mestre em Kenjutsu, um estilo japonês de luta com espada, e especialista internacional em segurança particular.
“QAnon é uma operação militar positiva que está trabalhando para derrubar o Estado Paralelo”, escreveu La Motta, numa publicação de abril de 2020, no Facebook.
O texto afirma, falsamente, que o coronavírus é uma trama equivalente a “crimes contra a humanidade causando mortes premeditadas, sofrimento e dificuldades econômicas, em combinação com a supressão de medicamentos preventivos e tratamentos naturais“.
Antonio La Motta disse que Precisava ir numa Missão na Filadélfia
Antonio La Motta trabalha para a “Nationwide Investigations & Security”, uma empresa de serviços de segurança com sede em Houston, de acordo com o CEO da empresa Allen Hollimon, além do seu próprio site pessoal.
Hollimon disse à CNN que La Motta alegou ao seu supervisor, na semana passada, que precisava tirar uma licença para uma “missão” na Filadélfia, que não foi atribuída pela empresa. Hollomon, no entanto, disse não saber a razão pela qual La Motta estava na Filadélfia. De qualquer, disse La Motta era não uma ameaça, e que a empresa nunca teve problemas com ele.
A Relação de Antonio La Motta e a Senadora Republicana
Ainda na sexta-feira, diversas redes sociais de Antonio La Motta foram fechadas.
No entanto, alguns usuários identificaram Antonio La Motta junto da senadora republicana pelo Estado da Virgínia, Amanda Chase, em fotos e vídeos nas divulgados nas redes sociais (1,2).
Ainda não está claro o real nível de envolvimento de Amanda Chase com Antonio La Motta, mas…
…a Senadora Republicana Nega Qualquer Relação com La Motta
“O indivíduo nunca trabalhou para minha campanha de maneira remunerada ou foi solicitado pela minha campanha para ajudar como voluntário. Ele é simplesmente um apoiador que aparece de vez em quando nos eventos“, disse Amanda Chase.
Cabe destacar nesse ponto, que em 17 de fevereiro de 2020, Chase anunciou sua candidatura para o cargo de governador da Virgínia, em 2021, tornando-a a primeira candidata republicana ao governo do estado.
Quem é Joshua Macias?
Segundo o site do jornal “The Philadelphia Inquirer”, Joshua Macias aparece listado como co-fundador e conselheiro de um movimento político chamado “Vets for Trump”.
Coincidentemente, Joshua também aparece em ao menos dois eventos ao lado da senadora Amanda Chase. Tanto numa foto publicada na página oficial da senadora, no Facebook, quanto num vídeo de janeiro de 2020, no YouTube:
Em sua página no LinkedIn, Macias diz:
“Somos os veteranos que apoiam nosso 45º presidente dos Estados Unidos da América. Mantivemos a vigilância, sobrevivemos ao tiroteio. Somos a espinha dorsal do Movimento #MAGA em seu quintal. Para cada Rally, cada reunião da comunidade, estamos lá para ter coragem e força, bem como segurança!“
Aliás, ele é um apoiador de longa data de Donald Trump, conforme podemos ver numa foto divulgada por ele, no ano passado, em sua página pessoal:
Vladimir Lemets, diretor-executivo do movimento “Vets for Trump”, disse na última sexta-feira, que Macias havia viajado para a Filadélfia para monitorar como as cédulas estavam sendo contadas. Ele disse que Macias não tinha intenções violentas, e que pode ter pensado que sua licença para o porte de armas na Virgínia fosse válida na Pensilvânia.
Interessante destacar que licenças emitidas na Pensilvânia são aceitas na Virgínia, mas não o contrário.
Enfim, até o fechamento deste artigo não tivemos nenhuma informação que os dois homens pagaram a fiança que foi estipulada ou quem são os escritórios/advogados responsáveis por cuidar da defesa de ambos.
Conclusão
Falso! Embora dois homens armados tenham sido realmente presos pela polícia da Filadélfia, eles não estavam tentando infiltrar cédulas falsas de votação em urnas, tampouco entregar um caminhão de cédulas falsas no Centro de Convenções da Pensilvânia. De acordo com informações preliminares, os homens estariam agindo sob a crença de que “cédulas falsas” estavam sendo contadas no Centro de Convenções — uma alegação totalmente sem fundamento — e essa crença poderia ter sido o motivo pelo qual os levou até a Filadélfia.
Ainda não está claro qual era o objetivo final desses homens, diante dessa crença, mas não há nenhum indício de que estavam agindo para infiltrar cédulas falsas de votação, conforme foi amplamente divulgado por uma parte da imprensa brasileira e norte-americana.