A Garra de Chernobyl: Um simples toque pode realmente matar uma pessoa?
Recentemente, uma história divulgada pela página “Hora 7” (arquivo) nos chamou a atenção. A história era relacionada a um objeto chamado “Garra de Chernobyl”. Esse objeto teria sido utilizado para remover parte do teto da usina nuclear, e concentraria uma das mais altas taxas de radiação do planeta. Incrível e assustador, não é mesmo?
Logo no começo os leitores eram informados que, embora não houvesse um consenso, era muito possível que esse objeto fosse o mais perigoso do mundo. Segundo especialistas, tocar nessa garra significava morrer em pouquíssimo tempo. Em seguida era mencionado que uma análise teria sido feita por um cidadão chamado Rob Maxwell, descrito como um especialista no desastre nuclear e no que restou da região. De acordo com o texto, Rob teria dito que um único toque seria potencialmente letal.
Entretanto, será que isso é realmente verdadeiro? Um simples toque nesse objeto seria suficiente para matar uma pessoa? Especialistas realmente disseram isso? Estamos diante do objeto mais perigoso e radioativo do mundo? Descubra agora, aqui, no E-Farsas!
Verdadeiro ou Falso?
Falso! Um simples toque nessa garra não mataria uma pessoa. Aliás, seria necessário que uma pessoa permanecesse com a mão nessa garra por dias, talvez semanas seguidas, sem tirá-la da garra por um único segundo sequer, e sem passar por nenhum tratamento para, talvez, vir a óbito. Para completar, esse também não é o objeto mais perigoso da Zona de Exclusão de Chernobyl. Portanto, definitivamente, um toque não mataria uma pessoa. Tais informações são totalmente incorretas!
Vamos explicar direitinho essa história para vocês!
Como Tudo Isso Começou?
Toda essa história começou com uma matéria publicada no site “news.com.au” intitulada “The Claw of Chernobyl: most dangerous thing in the exclusion zone” (“A Garra de Chernobyl: a coisa mais perigosa da zona de exclusão”, em português), no dia 7 de julho de 2019.
Inicialmente, o texto dizia que a garra tinha sido abandonada nas profundezas de uma floresta após os esforços de limpeza, que se seguiram ao desastre nuclear de 1986, ou seja, ela teria sido abandonada há 33 anos. Também foi mencionado que, embora não fosse fácil encontrá-la, diversos guias oficiais sabiam de sua localização. Ainda assim, poucos turistas pediam permissão as autoridades ucranianas para se aproximarem da garra altamente contaminada.
O Histórico da Garra
Então, fomos apresentados ao Rob Maxwell, que é um arqueólogo de Sidney, na Austrália, mencionado pelo site como especialista em Chernobyl. Em seu perfil no Twitter, Rob alega ser um arqueólogo contemporâneo, especialista em Chernobyl e em radioatividade, artista, fotógrafo, membro do Templo Satânico e do Clube dos Exploradores.
Eis o que ele disse sobre o histórico da tal garra:
“As três partes da cobertura ao longo do reator nº 4 eram, na época, os locais mais letais e perigosos do planeta. Uma das partes emitia dezenas de milhares de roentgens, que era como se media a radioatividade. Quando o reator explodiu, sua tampa foi ejetada. (…) A cobertura de concreto voou e aterrissou verticalmente no buraco. Todas as barras de controle, o grafite, as barras de combustível e todo o material restante explodiu e foi parar nos telhados vizinhos (…) Então, essa garra estava profundamente envolvida em todo o material intensamente radioativo, enquanto o movia de volta para o núcleo. Dizer que a garra é altamente radioativa e perigosa não é um exagero”.
Segundo Rob, também havia um cemitério de veículos que cobria uma grande área nos arredores de Pripyat. Os turistas até podiam ter acesso a essa área, mas dependiam da boa vontade dos oficiais ucranianos. Tais veículos, desde carros até aeronaves, teriam sido utilizados no rescaldo do desastre. Eles estariam tão radioativos que não podiam ser tocados. Teriam sido simplesmente descartados, e estavam em processo de corrosão na floresta.
Em Busca da Garra
De acordo com o site, Rob contou com a ajuda de guias locais para encontrar a tal garra. Esse encontro teria ocorrido entre os anos de 2010 e 2011. Até então ele não sabia da existência desse objeto, ou seja, inicialmente teria sido uma sugestão dos guias. Porém, os próprios guias tinham apenas uma “vaga ideia” de onde essa garra estava. Somente após alguns quilômetros fora de Pripyat, e muita discussão sobre o caminho certo, é que eles a encontraram.
Então, Rob decidiu colocar a mão dentro da garra para obter uma leitura do seu contador Geiger, algo que ele não recomendava que ninguém fizesse.
“Há muitas coisas na Zona de Exclusão atualmente, que o contato, por qualquer período prolongado, irá definitivamente matá-lo e, a garra, é definitivamente a mais perigosa de todas, porque não está isolada ou inacessível como outras ameaças. Está simplesmente repousando numa clareira na floresta pelo resto da vida. É severamente, potencialmente letal“, disse Rob.
“Coloquei minha mão dentro, porque queria obter uma leitura com o contador Geiger. Se eu estava preocupado? Sim, estava o tempo todo preocupado. O guia dizia para mim: ‘Não toque, não toque!”. Então, apenas coloquei minha mão rapidamente e tirei. Não foi fácil obter uma leitura, porque a contagem estava subindo rapidamente. (…) Por fim, consegui obter alguns números e gritamos: ‘Agora!’. Em seguida, tirei minha mão“, completou.
A Leitura do Contador Geiger: 39,80 uSv/h
“Uma das leituras mostrava 39,80 microsieverts por hora (uSv/h). A radiação de fundo média em Sidney é geralmente algo em torno de 0,17 uSv/h. Assim sendo, a garra libera algo em torno de 950 uSv de radiação por dia. Qualquer período de tempo próximo a garra é extremamente perigoso. Entramos e saímos bem rapidamente e nos certificamos de manter uma boa distância entre nós, exceto no momento de obter a leitura“, prosseguiu.
Rob chegou a dizer que presenciar a garra era como estar diante de uma criatura mitológica.
Uma Limpeza Completa
Para se proteger, Rob assegurou-se que estava coberto até o pulso, porém sua mão ficou exposta, ainda que por apenas alguns segundos. Ele disse que a experiência com a garra o fez pensar em toda a contaminação radioativa da Zona de Exclusão. Ele também disse que as pessoas deviam minimizar o contato com objetos, especialmente as superfícies empoeiradas. E, no final do passeio, elas deviam esfregar bem seus corpos. Uma limpeza completa com água e sabão normal, mas não com tanta força ao ponto de se arranhar e acabar colocando materiais radioativos dentro do corpo.
Ao final da matéria, Rob disse que, provavelmente, a garra ficará pra sempre na floresta, porque ninguém quer ou planeja removê-la de lá. Ele também não recomendou que ninguém visitasse a garra, até mesmo porque havia coisas menos perigosas para se visitar em Chernobyl.
Onde Está o Problema?
O texto publicado pelo site australiano possui três problemas cruciais. Vamos a eles!
1) A Garra Não é a Coisa Mais Radioativa da Zona de Exclusão de Chernobyl
Para vocês terem uma ideia, há pequenos fragmentos do antigo reator espalhados no solo, que emitem muito mais radiação do que a garra. Além disso, em alguns locais o próprio solo e a vegetação também emitem muito mais radiação. E como sabemos disso? Graças a uma YouTuber que possui um canal chamado “bionerd23”. Ela é relativamente famosa no YouTube, há mais de uma década, por postar vídeos mostrando diversas medições de radioatividade em objetos e em locais ao redor do mundo, incluindo o Brasil e, especialmente, a Zona de Exclusão de Chernobyl.
Confira um vídeo, no qual essa usuária pegou em solo contaminado e fez a leitura de minúsculo fragmento no solo na Zona de Exclusão, em 2012:
Os contadores Geiger apontaram que o minúsculo fragmento do antigo núcleo emitia cerca de 18 mSv/h! Para vocês terem uma ideia isso é cerca de 45 vezes mais radiação do que Rob Maxwell disse ter medido na tal garra!
Confira um outro vídeo dessa usuária, quando ela visitou uma determinada parte da chamada “Floresta Vermelha“, em 2012, também na Zona de Exclusão:
No vídeo é possível notar que a vegetação emitia entre 85 a 330 uSv/h, porém algumas partes do solo chegavam a mais de 850 uSv/h! Esses valores também são muito superiores em relação ao que foi obtido por Rob Maxwell durante o tempo que alegou ter passado diante da garra!
2) A Radioatividade na Parte Interna da Garra é Mais Alta, mas Insuficiente para Matar Com um Simples Toque
Rob não foi a única pessoa a conhecer a tal garra pessoalmente. Somente a usuária “bionerd23”, por exemplo, possui dois vídeos em seu canal com resultados bem mais impressionantes. O primeiro vídeo foi publicado em 2012, e o segundo em 2015. Confira ambos, abaixo:
No primeiro vídeo é possível notar que a parte externa da garra é menos radioativa que a parte interna. A diferença é absurda. Temos leituras de 100 a 150 uSv/h na parte externa, mas na parte interna, bem próximo do solo, a leitura aponta para 850 uSv/h. Ainda assim, um toque seria insuficiente para matar uma pessoa. Como comparação, uma tomografia computadorizada de crânio expõe o paciente a cerca de 2 mSv de radiação, pouco mais que o dobro dessa leitura.
Já no segundo vídeo tivemos leituras mais próximas daquelas obtidas por Rob Maxwell. Cerca de 20 a 50 uSv/h na parte externa e entre 100 e 330 uSv/h na parte interna.
Confira também um outro vídeo no YouTube, onde mostra um grupo de visitantes munidos de seus contadores Geiger:
Nesse vídeo é possível notar que celulares funcionam normalmente, e ninguém aparenta estar muito preocupado. Alguns visitantes, inclusive, resvalam os braços na estrutura da garra, que aqui foi apelidada de “Garra da Morte”. De qualquer forma, apesar do nome pomposo, ela está longe de ser realmente letal. É exatamente isso que nos leva ao terceiro item.
3) Um Toque na Garra Não Mata uma Pessoa
É importante deixar claro, que não estamos dizendo que seja saudável ou divertido tocar em objetos contaminados. Muitos menos que seja seguro fazer isso de forma rotineira e por um período prolongado. O que estamos dizendo é que, ao contrário do divulgado, um simples toque na garra não matará uma pessoa.
Para compreender melhor essa questão é necessário saber o que é “sievert” (Sv). Essa é uma unidade utilizada para avaliar o impacto da radiação nos seres humanos. Essa unidade é fracionada. Assim sendo temos o milisievert (mSv) e microsievert (uSv). 1000 uSv é igual a 1 mSv, sendo que 1000 mSv é igual a 1 Sv. Simples.
Apesar dos efeitos da radiação serem um tanto quanto imprevisíveis nos seres humanos, visto que temos casos extraordinários de pessoas que sobreviveram a altíssimos índices de radioatividade, a exposição a 4 Sv/h (4000 mSv ou 4.000.000 uSv) é normalmente considerada fatal (caso a pessoa passe por algum tratamento de descontaminação é possível que sobreviva). No caso de Chernobyl, estima-se que os níveis de radiação na sala de controle, logo após a explosão do reator nº4, tenham chegado a 300 Sv/h. Logo, a dose letal, nesse caso, seria alcançada em alguns poucos minutos.
Para tornar esses comparativos um pouco mais “lúdicos”, confira o infográfico abaixo:
Considerando apenas o valor que foi medido por Rob Maxwell, seria necessário que uma pessoa permanecesse com a mão na “Garra de Chernobyl”, por dias, talvez semanas seguidas, sem tirá-la da garra por um único segundo sequer, e sem passar por nenhum tratamento para, quiçá, vir a óbito.
Duvida? Entramos em Contato com Rob Maxwell!
Embora Rob Maxwell não tenha dito que um simples toque mataria uma pessoa, diversos tabloides britânicos resolveram, como era de se esperar, adotar uma postura sensacionalista. Como exemplo podemos citar o “The Sun” e o “Daily Mirror“, que deram um show de alarmismo em suas manchetes. Tais manchetes e textos acabaram sendo seguidos por páginas brasileiras, assim como o “Hora 7“, “Fatos Desconhecidos” etc..
Então, entrei em contato com Rob através do Twitter, comentando de forma muito sucinta o que acabei de escrever para vocês. Também perguntei se ele corroborava com o que tinha sido publicado pelos tabloides britânicos. Ele me respondeu rapidamente dizendo que não sabia de onde os tabloides tinham tirado essa informação e que eu estava certo, ou seja, seria necessário muito mais tempo em contato físico com a garra para que a radiação nela contida começasse a se tornar uma verdadeira ameaça a vida de alguém.
Ainda Duvida? Entramos em Contato com a Comissão Reguladora da Energia Nuclear dos EUA!
Também entramos em contato com a Comissão Reguladora da Energia Nuclear (NRC) dos Estados Unidos. Questionamos justamente essa história, ou seja, se o simples toque num objeto emanando cerca de 40 uSv/h poderia matar alguém. Quem nos respondeu a solicitação foi o Scott Burnell, oficial de Relações Públicas da NRC.
Por ser uma agência doméstica, ele inicialmente recomendou que entrássemos em contato com o Centro de Mídia da Agência Internacional de Energia Atômica. Contudo, ele nos forneceu um comparativo muito interessante. Segundo ele, os Centros de Controle e Prevenção de Doenças dos EUA destacam. que um típico passageiro de uma companhia aérea, voando da Costa Leste até a Costa Oeste dos EUA, receberia uma dose de cerca de 3,5 millirem de radiação. Esses 3,5 millirem são equivalentes a 35 uSv. Portanto, 3,98 millirem/hora não seriam considerados um problema de saúde imediato.
Na própria página da NRC é possível encontrar uma informação bem interessante. Em média um norte-americano recebe uma dose de radiação de cerca de 6,2 mSv por ano. Mais da metade é proveniente da radiação natural de fundo, principalmente do radônio presente no ar, raios cósmicos e da própria Terra. Considerando somente o valor obtido por Rob, grosso modo, a garra demoraria cerca de 155 dias para emanar o mesmo que um norte-americano receberia naturalmente durante um ano inteiro.
Conclusão
Falso! Um simples toque nessa garra não mataria uma pessoa. Aliás, seria necessário que uma pessoa permanecesse com a mão nessa garra por dias, talvez semanas seguidas, sem tirá-la da garra por um único segundo sequer, e sem passar por nenhum tratamento para, talvez, vir a óbito. Para completar, esse também não é o objeto mais perigoso da Zona de Exclusão de Chernobyl, visto que há minúsculos fragmentos no solo, que conseguem ser muito mais radioativos que a garra.
Observações Finais
É importante deixar claro, que não nos aprofundamos sobre os efeitos do envenenamento por radiação, e nem mesmo os riscos de câncer e mutações genéticas, que podem ser induzidos após uma exposição prolongada a radiação (mencionada neste artigo de forma mais genérica para melhor compreensão de vocês), ainda que em doses baixas. Os modelos que preveem tais riscos continuam controversos. Porém, nada diz que um simples toque num objeto, com aquela leitura citada por Rob Maxwell, mataria uma pessoa. Afirmar isso demonstra, no mínimo, a falta de um conhecimento básico sobre a história de Chernobyl e da energia nuclear.
Isto posto, é preciso ter em mente que, dependendo do local onde você esteja parado em Chernobyl ou até mesmo respirar na Zona de Exclusão pode ser milhares de vezes pior que um simples toque num objeto. Apesar de existir uma certa “margem de segurança” em relação ao tempo de visitação e de que existam pessoas absolutamente saudáveis morando na Zona de Exclusão, todo cuidado é pouco. Por outro lado, conhecimento é fundamental. As doses absorvidas de radiação ionizante pelo corpo, que também dependem quão exposto cada um esteja, não são uma sentença de morte imediata ou a longo prazo. A estigmatização em relação aos sobreviventes do desastre, por exemplo, se mostrou ser muito mais caótica do que lidar com os efeitos a longo prazo dos altos níveis de radiação. Procure sempre se informar para não cometer injustiças desnecessárias.
Enfim! Ainda que a garra não seja fatal ao toque e não seja o objeto mais perigoso de Chernobyl, ela é um lembrete de que devemos respeitar a memória daqueles que morreram, foram ou ainda são vítimas do desastre. É preciso saber que não se trata de uma atração turística, mas o símbolo daquilo que nunca deveria ter acontecido.