“Chapéu magnético” realmente reverte a perda de memória de pacientes com Alzheimer?
No final de setembro de 2019, diversos sites brasileiros e internacionais divulgaram o que parecia ser um grande passo no tratamento do Alzheimer.
Não sabe o que é o Alzheimer (também conhecido como “Mal de Alzheimer”)? Bem, trata-se de uma doença neurodegenerativa progressiva, que se manifesta apresentando deterioração cognitiva e da memória de curto prazo. Isso sem contar uma variedade de sintomas neuropsiquiátricos e de alterações comportamentais que se agravam ao longo do tempo. O quadro clínico costuma ser dividido em quatro estágios, sendo que o primeiro sintoma, e o mais característico, é a perda de memória recente. Com a progressão da doença, vão aparecendo sintomas mais graves, tais como: a perda de memória remota, ou seja, dos fatos mais antigos, irritabilidade, falhas na linguagem, e prejuízo na capacidade de se orientar no espaço e no tempo.
Embora avanços de ordem paliativa tenham sido feitos ao longo do tempo, até hoje não existe uma cura. Recentemente, no entanto, segundo o site “Hypescience” (arquivo), uma espécie de touca emissora de ondas eletromagnéticas teria sido capaz de reverter um ano de Alzheimer em apenas dois meses! Já um site chamado “Só Notícia Boa” (arquivo), parceiro de site de notícias “Metrópoles”, disse que a memória perdida devido ao Alzheimer havia sido recuperada pelo que chamou de “chapéu magnético”.
Entretanto, será que essa touca (ou chapéu magnético) é realmente capaz de recuperar a memória perdida de pacientes com Alzheimer? Qual será a realidade por trás dessas manchetes? Descubra agora, aqui, no E-Farsas!
Verdadeiro ou Falso?
Indeterminado! Embora tenha havido um grande frenesi em torno desse assunto, o estudo citado por sites brasileiros e internacionais não demonstra se o equipamento utilizado é realmente capaz de reverter a memória perdida de pacientes com Alzheimer. O próprio site do Serviço Nacional de Saúde do Reino Unido (NHS) divulgou um interessante texto mostrando as razões pelas quais devemos ter MUITA cautela sobre o que foi divulgado. Alguns pontos cruciais foram simplesmente ignorados por alguns sites e subsequentemente os leitores deixaram de ser corretamente informados.
Vamos explicar de maneira simplificada, mas sem perder a qualidade da informação, a realidade por trás dessa história!
Uma Introdução ao Assunto
Segundo o NHS, o “Mal de Alzheimer” é caracterizado por um acúmulo de proteínas amiloides beta e tau, que causam placas e emaranhados no cérebro. Tais estruturas parecem afetar a função cerebral. Testes anteriores de medicamentos para dissolver essas placas e emaranhados de proteínas não foram bem sucedidos. E olha que não foi por falta de tentativa. De acordo com o site Biospace, 146 tentativas de desenvolver medicamentos no combate ao Alzheimer falharam entre 1998 e 2017.
Num novo estudo, que motivou inúmeras manchetes efusivas sobre o tema, os pesquisadores criaram uma espécie de touca de banho (não exatamente um chapéu) chamada “MemorEM”, que foi utilizada para fornecer ondas eletromagnéticas ao cérebro. O objetivo era tentar dissolver o que se conhece como oligômeros – grupos de proteínas anormais – enquanto estavam se formando.
O estudo envolveu somente oito pessoas que tinham o que foi descrito de “Alzheimer leve a moderado”. O dispositivo aparentou ser seguro, sem complicações e sem evidências de que pudesse causar sangramentos ou desenvolvimento de tumores no cérebro. Também houve sinal de melhorias nos testes de pensamento e memória na maioria das pessoas que participaram do estudo. Diga-se de passagem, esse foi tão somente um ensaio clínico experimental, num estágio bem inicial, que analisou primordialmente a segurança do equipamento, ou seja, ele não afirma, com plena certeza, que o tratamento funciona.
Quem Está Por Trás do Estudo? Quem o Financiou?
O estudo denominado “A Clinical Trial of Transcranial Electromagnetic Treatment in Alzheimer’s Disease: Cognitive Enhancement and Associated Changes in Cerebrospinal Fluid, Blood, and Brain Imaging” foi realizado por pesquisadores da empresa norte-americana “NeuroEM Therapeutics”, que é a própria fabricante do equipamento. Na verdade, dois dos autores por trás do estudo fundaram a “NeuroEM Therapeutics”, ou seja, existe um ENORME interesse comercial envolvido nesse estudo.
Outras empresas e instituições de ensino também ajudaram a desenvolver o dispositivo, assim como: a “Left Coast Engineering”, “Invicro”, “Ocotillo Electromagnetics”, “RF Exposure Laboratory” e o University Diagnostic Institute, além da Universidade do Sul da Flórida (EUA) e da Universidade Charles (República Tcheca).
É interessante destacar, que no estudo foi mencionado que a Universidade do Sul da Flórida possui interesse financeiro na “NeuroEM Therapeutics”, que por sua vez teria fornecido TODO o suporte financeiro para o ensaio clínico experimental. Contudo, o dinheiro angariado pela empresa também teria vindo da “Glass Charitable Foundation” (uma fundação familiar particular), do “Angel Investor Forum” (um grupo privado de investimento), e do “NINDS” (Instituto Nacional de Desordens Neurológicas e Derrame dos Estados Unidos).
Esse estudo foi publicado num periódico revisado por pares chamado “Journal of Alzheimer’s Disease”, e está disponível para ser consultado gratuitamente por qualquer pessoa. Estar num periódico verdadeiramente revisado por pares é um bom começo, mas, segundo a NHS, o estudo não é capaz de nos dizer se o “MemorEM” pode reverter a perda de memória.
Afinal de Contas, que Tipo de Estudo Foi Esse?
Conforme dissemos anteriormente, tratou-se apenas de um ensaio clínico experimental, em estágio inicial, e classificado como “open-label” e “single-arm“. E o que tudo isso significa? Os participantes e os pesquisadores tinham ciência do tratamento que estava sendo fornecido, mas não havia um grupo de comparação. Em outras palavras, não havia nenhum grupo de controle.
Esse tipo de estudo em estágio inicial, com um número muito pequeno de pessoas, visa principalmente verificar se o tratamento parece seguro o suficiente para continuar sendo explorado. Também pode dar um indicativo de eficácia, mas não foi projetado para analisar isso de maneira correta. Se os resultados forem promissores, o tratamento poderá avançar para estágios subsequentes, que incluem progressivamente mais pessoas, um acompanhamento mais longo e começam a comparar o tratamento com placebo ou outros tipos de tratamentos, para garantir que ele realmente funcione.
Os Participantes
Os pesquisadores recrutaram oito pessoas com idades entre 63 e 82 anos, com Alzheimer “leve a moderado”, no Health/Byrd Alzheimer’s Institute, pertencente a Universidade do Sul da Flórida, entre 2017 e 2018. Cuidadores e indivíduos com Alzheimer foram recrutados juntos, para que os cuidadores pudessem ajudar no tratamento.
Os participantes foram submetidos entre 3 a 4 dias de testes, incluindo tomografias, exames de sangue e uma punção lombar para coletar uma amostra de de líquido cefalorraquidiano para testar as proteínas beta-amiloide e tau. Os participantes também foram submetidos a vários testes de memória, pensamento e raciocínio, incluindo o teste ADAS-cog (subescala cognitiva da Alzheimer’s Disease Assessment Scale), assim como testes de funcionalidade diária.
Como o Dispositivo Foi Utilizado?
O tratamento consistiu numa espécie de touca de banho, usada na cabeça, que continha ímãs. Um dispositivo de controle usado no braço servia para ligar o dispositivo. Enquanto ligado, ele emitia pulsos de ondas eletromagnéticas para o cérebro. Foi solicitado que as pessoas usassem o dispositivo duas vezes por dia (uma hora no início da manhã e uma hora no fim da tarde) durante dois meses. A primeira utilização ocorreu na clínica, para que o cuidador pudesse ver como era para ser feito. Nas demais vezes, a touca foi administrada pelo cuidador, na casa do paciente.
As pessoas foram examinadas após 7, 14, 30 e 60 dias para eventos adversos e para fazer exames de sangue. Os cuidadores aferiram a pressão sanguínea e a temperatura dos pacientes todos os dias para verificar se havia alterações relacionadas ao tratamento. Ao final do tratamento de dois meses, os pacientes foram submetidos a testes repetidos de raciocínio e capacidade de memória, e realizaram repetidas tomografias, exames de sangue e de líquido cefalorraquidiano. Os testes cognitivos foram repetidos novamente duas semanas após o término do tratamento.
E Quais Foram os Resultados Básicos?
A seguir, vamos listar os resultados básicos apontados pelo estudo.
Segurança
Não houve relatos de desconforto pela utilização do dispositivo e os pesquisadores não encontraram evidências de efeitos adversos no comportamento das pessoas ou em aferições fisiológicas, assim como temperatura ou pressão arterial. Também não houve sinal de sangramento ou desenvolvimento de tumores no cérebro.
Memória e Raciocínio
Os resultados de 7 dos 8 pacientes mostraram uma melhora média de 4 pontos ou mais na escala de 70 pontos do teste ADAS-cog. Essas melhorias aparentemente se mantiveram duas semanas após o tratamento. Essa foi uma melhora clinicamente significativa, visto que os pesquisadores dizem que o paciente com “Alzheimer médio” perde cerca de 4 pontos nessa escala a cada 12 a 15 meses. Isso significa que uma melhoria de 4 pontos pode colocá-los de volta ao local onde estavam cerca de um ano antes. Contudo, isso não quer dizer necessariamente, que a memória será restaurada exatamente ao que era um ano antes, visto que estamos falando de um quadro geral. Para completar, os participantes também mostraram melhorias significativas em um teste de recuperação imediata de palavras.
No entanto, o paciente que não apresentou melhorias apresentou um declínio de cerca de 4 pontos.
Testando os Níveis de Proteína Amiloide
Os pesquisadores descobriram um aumento na quantidade de proteína beta-amiloide no líquido cefalorraquidiano e um aumento da proteína tau encontrada no sangue após o tratamento. Isso pode sugerir que os grupos de proteínas estavam sendo decompostos pelo tratamento e expulsos das células nervosas do cérebro.
Como os Pesquisadores Diretamente Envolvidos com o Estudo Interpretaram os Resultados?
Os pesquisadores diretamente envolvidos com o estudo disseram:
“Embora esses resultados promissores precisem ser replicados em ensaios clínicos controlados, eles sugerem que o tratamento possa dar um salto vertical para uma intervenção terapêutica totalmente nova contra o Mal de Alzheimer“
O Dr. Gary Arendash, fundador e CEO da “NeuroEM Therapeutics”, que também participou do estudo, deu uma peculiar declaração:
“Talvez a melhor indicação de que os dois meses de tratamento tenham tido um efeito clinicamente importante nos pacientes com Alzheimer é que nenhum dos pacientes quis devolver seu dispositivo de cabeça para a Universidade do Sul da Flórida/Byrd Alzheimer’s Institute após o término do estudo“, disse o Dr. Gary Arendash.
Somente isso nos dá uma dimensão do quão frágeis são as evidências sobre a real eficácia do dispositivo.
A Opinião de Especialistas Independentes
O tabloide britânico “Daily Mail” fez a lição de casa e chegou a publicar a opinião de especialistas independentes. E o que eles alertaram? Novamente, o ensaio clínico não fornece evidências suficientes que o dispositivo funcione!
Algumas Opiniões Sobre o Dispositivo
Confira abaixo algumas dessas opiniões:
Dr. James Pickett, chefe de pesquisa da Alzheimer’s Society, no Reino Unido:
“Embora seja positivo ver o potencial de tratamentos inovadores para demência, este estudo não é capaz de nos dizer se o dispositivo de cabeça pode modificar a progressão do Mal de Alzheimer. Apenas oito pessoas participaram deste estudo e, como não havia um grupo controle, não podemos descartar a possibilidade de que os benefícios positivos relatados sejam devidos a um efeito placebo.
Uma vez que estamos acelerando o desenvolvimento de soluções de tecnologia para demência por meio do nosso programa ‘Innovation Accelerator’, somos encorajados a notar que é viável usar esse dispositivo em casa e que os participantes queriam continuar usando-o, mas precisamos ver testes mais amplos antes que possamos dizer se este dispositivo tratará efetivamente os sintomas da demência.”
Dra. Sara Imarisio, chefe de pesquisa da Alzheimer’s Research UK:
“Os resultados deste estudo mostram algum potencial no uso de uma técnica não invasiva que os pesquisadores sugerem que podem ajudar a melhorar as habilidades cognitivas das pessoas com doença de Alzheimer. Este foi um teste muito pequeno, envolvendo apenas oito pessoas. Portanto, precisaremos ver estudos muito mais detalhes e de longo prazo para determinar se essa técnica pode ser benéfica para as pessoas com a doença.
Atualmente, existem poucos tratamentos disponíveis para a doença de Alzheimer, que apenas aliviam alguns sintomas por um determinado tempo. Assim sendo, precisamos urgentemente encontrar novas maneiras de ajudar. Os medicamentos não são as únicas coisas que os pesquisadores estão explorando para melhorar a vida das pessoas com Alzheimer ou outras formas de demência. É importante que possamos acompanhar todas as pistas promissoras.“
Um Detalhe Fundamental
Um ponto muito interessante do “Daily Mail” é que na manchete, justamente na parte relacionada sobre a possibilidade de reversão da perda de memória, foi colocada entre aspas. Isso não foi feito por parte de sites brasileiros que abordaram esse estudo (ao menos aqueles citados neste artigo).
Conclusão
Indeterminado! Os títulos de diversas notícias publicadas em sites brasileiros e internacionais apontando a existência de um tratamento que “pode reverter a perda de memória” causada pelo Alzheimer chamaram muita atenção. Contudo, promessas semelhantes foram bradadas por cientistas e pela mídia ao longo dos anos, e até hoje não há uma cura para a doença. O estudo recente sugere um outro campo de pesquisa, mas o tratamento mencionado ainda está nos estágios iniciais de desenvolvimento.
O ensaio clínico foi útil em relação ao seu principal objetivo: verificar se o tratamento era seguro. Aparentemente é seguro, mas o ensaio foi realizado apenas com oito pessoas, que foram acompanhadas por um período muito curto de tempo. São necessários estudos de longo prazo, em mais pessoas, para garantir que o tratamento seja seguro e não cause danos. Tais danos podem variar desde questões psicológicas (em ter que usar uma touca que cobre completamente a cabeça por determinados períodos todos os dias) a efeitos mais graves (como o desenvolvimento de tumores). Embora não tenha surgido sinais disso, um período de avaliação de apenas dois meses é muito curto.
Além disso, o estudo não conseguiu avaliar adequadamente a eficácia, visto que havia poucas pessoas e nenhum grupo de controle. Não podemos dizer se as melhorias observadas foram decorrentes do tratamento ou de outros fatores. Por exemplo, a atividade de participar do teste e ser repetidamente testado pode levar as pessoas a se sentirem envolvidas, o que poderia aumentar a memória e a capacidade cognitiva.
Para Onde Devemos Olhar a Partir de Agora?
Se as próximas etapas puderem replicar os resultados teremos um melhor posicionamento para ver como o tratamento funciona, e quais características da doença ou do paciente podem estar relacionadas a essas melhorias. Mesmo num pequeno grupo de oito pessoas, uma delas não obteve nenhum benefício com o tratamento. Assim sendo, parece improvável que funcione para todos. Também é importante observar que esse tratamento provavelmente funcionará apenas para o Alzheimer, e não outras formas de demência, tal como a demência vascular.
Portanto, por uma questão de cautela, classificamos o caso como “Indeterminado”.