Foto das Pirâmides de Gizé alinhadas com o Cinturão de Órion é verdadeira ou falsa?
No dia 28 de maio de 2020, um determinado perfil no Twitter chamado “Astronomiaum” divulgou uma imagem muito emblemática (arquivo). Ela simplesmente mostrava as pirâmides de Gizé perfeitamente alinhadas com o Cinturão de Órion, conhecido popularmente no Brasil como “Três Marias”.
Confira o tuíte, abaixo:
Para vocês terem uma ideia, a imagem recebeu mais de 27 mil curtidas e foi retuítada mais de 5,5 mil vezes!
Entretanto, será que essa imagem é verdadeira? Será que o Cinturão de Órion está realmente alinhado com as Pirâmides de Gizé? Descubra agora, aqui, no E-Farsas!
Verdadeiro ou Falso?
Falso! Em primeiro lugar, a imagem divulgada é apenas um frame de um vídeo digitalmente criado por um israelense chamado Nissim Farin Shtamper (“Shtamper” ou “FootageIsland” nas redes sociais). O vídeo sequer é recente, visto que ele circula nos repositórios de imagens, no mínimo, desde 2015.
Enfim! Não se trata de uma filmagem verdadeira, mas tão somente uma criação artística. Simples assim.
Se ainda assim por algum estranho motivo você acredita que se trata de um vídeo verdadeiro, precisará acreditar que o vídeo abaixo, do lendário Kraken, criado por Nissim também é verdadeiro.
Boa sorte com isso!
Em segundo lugar, essa não é a primeira vez que o perfil “Astronomiaum”, que se autointitula “A maior e melhor página de Astronomia do Twitter brasileiro” induz seus seguidores a acreditar que estão diante de uma imagem ou foto verdadeira.
Luzes no céu! Fenômeno semelhante a aurora boreal é verdadeiro ou falso?
Em terceiro lugar, a chamada “Teoria da Correlação Gizé-Órion” é um baita engodo! É justamente sobre isso nos aprofudaremos a seguir!
O Engodo da “Teoria da Correlação Gizé-Órion”
Toda essa história de que as pirâmides de Gizé estariam perfeitamente alinhadas com o Cinturão de Órion é uma baboseira sem tamanho. Qualquer pessoa ou perfil que levasse a Astronomia a sério deveria saber disso.
Tudo isso se começou a se tornar popular, de fato, através de um cidadão belga chamado Robert Bauval (72), um engenheiro de minas — não tinha qualquer formação em Astronomia ou Arqueologia — que no final da década de 1980 inventou a chamada “Teoria da Correlação Gizé-Órion”. Aparentemente, essa correlação já havia sido feita por outra pessoa em 1973, mas vamos pular essa parte para não ficar muito confuso, visto que foi a partir de Bauval que isso ganhou força.
Basicamente, numa noite de 1983, Bauval levou sua família e família de um amigo para uma expedição pelas dunas de areia do Deserto da Arábia. Então, um amigo de Bauval apontou que as três estrelas que compõe o Cinturão de Órion não estavam perfeitamente alinhadas. Segundo Bauval, as três principais pirâmides do planalto de Gizê também não estavam. Então, ele correlacionou as duas coisas, porque na cabeça dele tudo fazia sentido.
O Bestseller de Bauval
Confiante, ele publicou sua ideia num periódico chamado “Discussions in Egyptology” em 1989, e publicou um livro chamado “The Orion Mystery“, em 1994. Havia alguma ciência nisso? Não, e continua não havendo nenhuma ciência nisso.
Aliás, tudo não passa de algo que se chama “pseudoarqueologia”. Os autores Erich von Däniken e Graham Hancock, por exemplo, fazem parte desse time de promotores da pseudoarqueologia.
Enfim, Bauval viu uma similaridade entre as estrelas e a Via Láctea, por um lado, e as Pirâmides de Gizé e o Nilo, por outro. Como se isso não bastasse, Alnitak — a estrela mais a esquerda do Cinturão de Órion — era conhecida por estar associada a Osíris nas Lendas Osirianas, e Sírius (da constelação de Cão Maior) com Ísis, esposa e irmã de Osíris e mãe de Hórus.
Assim nasceu a fascinante e romântica ideia de que os antigos egípcios estavam replicando seu céu e suas lendas na Terra. Novamente, não havia ciência envolvida nisso, apenas achismos.
Desmisitificando o Engodo
Robert Bauval acreditava que as três estrelas do Cinturão de Órion estavam desalinhadas da mesma maneira que as três principais pirâmides de Gizé. Ele deduziu que as três pirâmides estavam desalinhadas, porque acreditava que suas diagonais deveriam estar todas em linha reta.
Entretanto, os cantos sudeste das três principais pirâmides de Gizé estão praticamente alinhados em diagonal e apontam para o templo de Rá, em Heliópolis — uma das principais cidades do Antigo Egito. Além disso, as três principais pirâmides foram orientadas cardinalmente com uma certa precisão extraordinária (comentaremos sobre isso mais tarde).
Confira as imagens abaixo:
Diga-se de passagem três das pirâmides da 5ª dinastia em Abusir são similamente alinhadas, desta vez nos cantos noroeste.
Outro detalhe é que Órion, o Caçador, era um personagem da mitologia grega, que foi inventado cerca de 2.000 anos depois da construção das pirâmides de Gizé. A maioria dos nomes de constelações que conhecemos atualmente tem origem grega. Na época da Grande Pirâmide de Khufu, não havia “Constelação de Órion”, nem “Caçador”, nem “Cinturão de Órion”.
Evidentemente, os antigos egípcios juntavam estrelas para formar constelações, mas faziam isso com estrelas diferentes e criavam animais diferentes. Embora a estrela Alnitak (Sahu para os antigos egípcios), parece ter sido associada a Osíris, não havia nenhuma base para os antigos egípcios compararem as três estrelas no Cinturão de Órion de hoje com as pirâmides de Gizé. É puro anacronismo — utilização dos conceitos e ideias de uma época para analisar os fatos de outro tempo.
Com a Palavra, a Astronomia
Em junho de 1999, dois astrônomos — Ed Krupp do Observatório Griffith em Los Angeles e Tony Fairall da Universidade da Cidade do Cabo, na África do Sul — fizeram parte de um interessante artigo na revista Astronomy & Geophysics, uma publicação científica da Real Sociedade Astronômica.
Utilizando equipamentos de planetários, Krupp e Fairall investigaram separadamente o ângulo entre o alinhamento do Cinturão de Órion em relação ao Norte durante o período citado por Bauval (o qual difere do ângulo visto hoje ou no terceiro milênio antes de Cristo devido a precessão dos equinócios). Descobriu-se que o ângulo era consideravelmente diferente da “justaposição perfeita” defendida por Bauval, entre 47 e 50 graus pelas medições do planetário, comparado ao ângulo de 38 graus formado pelas pirâmides.
Krupp também apontou para o fato que a linha ligeiramente curva formada pelas três pirâmides desviava-se rumo ao norte, quando a ligeira alteração na linha formada pelo Cinturão de Órion desviava-se rumo ao sul e, para fazê-las coincidir, teria que invertê-las verticalmente. Na verdade, foi exatamente isso que ocorreu no livro “The Orion Mystery”, que comparava imagens das pirâmides e do Cinturão de Órion sem informar que o mapa das pirâmides estava invertido.
Baita engodo. Pura pseudoarqueologia. Enrolação para vender livro.
E os Alinhamentos Existentes? Obras de Extraterrestres?
Nada de extraterrestres por aqui. Segundo um britânico chamado Derek Hitchins, engenheiro de sistemas que se autointitula “professor em Egiptologia”, haveria uma razão perfeitamente simples para as pirâmides estarem alinhadas da forma que se encontram, que nada teria a ver com estrelas ou a Via Láctea. Em seu site ele menciona que as Pirâmides de Gizé estão alinhadas como estão, para que pudessem ser vistas pelas pessoas — especialmente reis — que viajassem rio abaixo a partir de Mênfis, a antiga capital, para visitar sua necrópole. Nada a ver com Constelação de Órion.
No site ele explica melhor em relação aquilo que crê ao fazer associações entre horizonte, ressurreição, entre outras coisas. E por que citei Derek Hitchins? Para mostrar que não precisa ter necessariamente formação na área para ter um pouco de bom senso.
Uma Possível Explicação para o Alinhamento Cardinal Quase Perfeito
Em 2018, Glen Dash, um engenheiro que estuda as pirâmides de Gizé, escreveu um artigo que foi publicado no periódico “The Journal of Ancient Egyptian Architecture“. Nele, Dash aventou a possibilidade de que os antigos egípicios poderiam ter usado o equinócio de Inverno para alinhar cardinalmente as pirâmides. Para isso bastaria usar um simples relógio solar. No entanto, Dash disse que, se eles realmente usaram esse método, ninguém sabe. Experimentos realizados nas últimas décadas sugerem que vários métodos que fazem uso do Sol ou das estrelas (não o Cinturão de Órion) também poderiam ter sido usados para alinhar as pirâmides.
“Os egípcios, infelizmente, nos deixaram poucas pistas. Não foram encontrados documentos de engenharia ou planos arquitetônicos que dêem explicações técnicas que demonstrem como os antigos egípcios alinharam seus templos ou pirâmides“, disse Dash no artigo.
Uma Criação Artística Nada Original
Essa ideia de criar/manipular imagens de estrelas ou planetas alinhados sobre as pirâmides de Gizé não é nada original. Em 2014, o Gilmar Lopes já havia escrito um artigo falando sobre uma outra imagem muito semelhante, manipulada digitalmente, que estava circulando na internet.
Segundo a pesquisa realizada pelo Gilmar, naquela época, quem começou com essas criações/manipulações digitais teria sido um blog chamado “World Mysteries”, numa postagem de abril de 2011.
Planetas alinhados sobre as piramides de Gizé a cada 2737 anos!
O autor do artigo, Charles Marcello, publicou uma imagem manipulada digitalmente para ilustrar seu texto onde ele sugeria que um determinado alinhamento planetário possuía elementos espirituais, místicos e até esotéricos. No artigo, Charles calculou (sem nenhuma base científica) que o fenômeno ocorreria a cada 2.737 anos e misturava uma série de teorias infundadas e apocalíticas, cruzando tudo com as supostas teorias Maias sobre fim do mundo (que não ocorreu no final de 2012)!
Eis a imagem original comumente utilizada nessas criações/manipulações digitais:
Conforme vocês podem notar, não há nenhum alinhamento estelar ou planetário da magnitude que gostam de propagar acima das pirâmides do Egito.
Conclusão
Falso! A imagem divulgada pelo perfil “Astronomiaum”, no Twitter é apenas um frame de um vídeo digitalmente criado por um israelense chamado Nissim Farin Shtamper (“Shtamper” ou “FootageIsland” nas redes sociais). O vídeo sequer é recente, visto que ele circula nos repositórios de imagens, no mínimo, desde 2015. Resumindo, não se trata de uma filmagem verdadeira, mas tão somente uma criação artística
Diga-se de passagem, essa não é a primeira vez que o perfil, que se autointitula “A maior e melhor página de Astronomia do Twitter brasileiro“, induz seus seguidores a acreditar que estão diante de uma imagem ou foto verdadeira.