Frase sobre a prática de crueldades pertence a Nicolau Maquiavel?
No dia 23 de junho de 2020, uma determinada página no Facebook (arquivo), pretensamente destinada a divulgação científica, disseminou um captura de tela contendo a seguinte frase:
“Você não deve se privar de saber como o mundo funciona, mas como Maquiavel dizia: você deve ser mal o suficiente para saber fazer crueldades e bom o suficiente para não ousar fazê-las“
Embora a frase possua um erro gramatical grosseiro, visto que aquele “mal” (algo feito de forma errada e incorreta) deveria ser “mau” (alguém que faz maldades), a publicação já obteve mais de mil compartilhamentos e 3 mil reações em menos de 24 horas! Além disso, a frase foi atribuída a Nicolau Maquiavel, um notório filósofo italiano que viveu entre os séculos XV e XVI!
Um detalhe interessante é que a imagem (a captura de tela) foi obtida a partir de um tuíte de um perfil chamado “Intelectualcurioso“ (arquivo), que possui cerca de 540 seguidores. Esse tuíte foi publicado no dia 11 de junho de 2020, mas obteve apenas 5 compartilhamentos desde então. Uma vez que a página “ConheCIÊNCIA” possui cerca de 1 milhão de seguidores, a quantidade de pessoas expostas a essa frase foi muito maior!
Enfim! Será que essa frase foi realmente dita ou escrita por Nicolau Maquiavel? Descubra agora, aqui, no E-Farsas!
Verdadeiro ou Falso?
Falso! Não há nenhuma evidência histórica de que Nicolau Maquiavel tenha dito ou escrito essa frase! Destrinchamos as principais obras de Maquiavel (“O Príncipe“, “Discursos sobre a Primeira Década de Tito Lívio” e “A Arte da Guerra“), mas não encontramos absolutamente nada nesse sentido.
O mais próximo que encontramos dessa frase foi no livro “O Príncipe”, em que há a seguinte passagem:
“Creio que isso decorra do bom ou do mau uso da crueldade. A crueldade bem empregada — se é lícito falar bem do mal — é aquela que se faz de uma só vez,por necessidade de segurança; depois não se deve perseverar nela, masconvertê-la no máximo de benefícios para os súditos. Mal usadas são aquelas maldades que, embora a princípio sejam poucas, com o tempo aumentam em vez de se extinguirem“
É até interessante destacar que Maquiavel indicava que a crueldade, se bem empregada, seria superior ao excesso de bondade. Logo, essa frase disseminada recentemente nas redes sociais sequer faria muito sentido ao que Maquiavel filosofava.
Numa rápida busca adicional no Google, não há nenhuma referência anterior a essa frase, exceto o tuíte do perfil “Intelectualcurioso”, que por sua vez não indicou nenhuma fonte confiável.
“Os Fins Justificam os Meios”
Para terminar esse artigo, você sabia que a frase “Os fins justificam os meios” não pertence a Maquiavel? Pois é! Essa frase está tão enraizada na mente de muitas pessoas, que elas nem desconfiam que estão disseminando uma informação falsa. Estudiosos asseguram que Maquiavel nunca escreveu tal frase. Nunca, mesmo. Ainda assim, a frase acabou se consagrando como a melhor síntese de todo o seu legado, uma síntese tão rasteira que acabou gerando mal-entendidos.
Provavelmente, o mais próximo que Maquiavel expressa é o seguinte ponto de vista no capítulo XVIII de “O Príncipe”:
“Os homens em geral julgam mais com os olhos que com as mãos; porque todos são capazes de ver, mas poucos, de sentir; todos veem aquilo que você parece, poucos tocam aquilo que você é; e estes pouco snão ousam opor-se à opinião de muitos, que contam com a majestade do Estado para defendê-los; enfim, nas ações de todos os homens, especialmente nas dos príncipes, quando não há juiz a quem apelar, o que vale é o resultado final.
Então que o príncipe faça por conquistar e manter o Estado: os meios serão sempre julgados honrosos e merecerão o elogio de todos, pois o vulgo é capturado por aquilo que parece e pelo evento da coisa, e no mundo não há senão o vulgo — os poucos não têm vez quando a maioria tem onde se apoiar”
Então, Quem Disse Isso?
Não é possível afirmar, com certeza, de onde exatamente vem essa expressão! Há quem diga que uma possível origem seria uma passagem de Heroides — uma coleção de quinze poemas epistolares compostos, em latim, do poeta romano Públio Ovídio Naso. Em Heroides, II, 85, há uma frase (“Exitus acta probat“) que poderia ser traduzida como “o resultado justifica a ação” ou algo assim.
O Livro “O Príncipe” é Tão Somente uma Sátira?
O filósofo e escritor Jean-Jacques Rousseau sustentou por muito tempo que “O Príncipe” teria sido uma obra satírica que procurava expor o cinismo do governo de um homem. Isso não parece tão absurdo quando você considera que Maquiavel foi preso e torturado por agentes da família Medici, cujos membros ele faz referência em “O Príncipe”. E não há como negar que Maquiavel tinha uma veia travessa; durante seus últimos anos, ele escreveu diversas comédias satíricas populares – e politicamente pungentes – para o teatro.
Décima Vez
Um detalhe que nos chama atenção é que essa é a décima vez, desde dezembro de 2019 (quinta vez somente nesse mês de junho), que a página “ConheCIÊNCIA” foi flagrada disseminando conteúdo falso, enganoso ou descontextualizado. Clique aqui para conferir as outras nove vezes.
Conclusão
Falso! Não há nenhuma evidência histórica de que Nicolau Maquiavel tenha dito ou escrito essa frase! Destrinchamos as principais obras de Maquiavel (“O Príncipe”, “Discursos sobre a Primeira Década de Tito Lívio” e “A Arte da Guerra”), mas não encontramos absolutamente nada nesse sentido.
Numa rápida busca adicional no Google, não há nenhuma referência anterior a essa frase, exceto o tuíte do perfil “Intelectualcurioso”, que por sua vez não indicou nenhuma fonte confiável.