Gatos selvagens invadiram um necrotério e comeram cadáveres humanos?
Está cada vez mais difícil navegar na internet e não se deparar com alguma notícia, no mínimo, excêntrica. Como exemplo tivemos um texto publicado no dia 23 de janeiro de 2020, no site “Mega Curioso”, cujo título dizia: “Gatos selvagens invadem necrotério e comem cadáveres humanos” (arquivo).
De autoria de uma redatora freelancer, que também alega ser professora e historiadora, o texto mencionava que “um estudo da Estação de Pesquisa Forense em Whitewater, no Colorado, Estados Unidos, descobriu acidentalmente que gatos, sejam eles selvagens ou domesticados, podem comer cadáveres humanos, inclusive o do próprio dono se for o caso“.
Além disso, “uma equipe de pesquisadores deixou cerca de 40 cadáveres do lado de fora das instalações da estação a fim de documentar de forma detalhada os diferentes estágios de decomposição do corpo humano. Contudo, dois gatos selvagens se aproximaram e comeram por completo os defuntos em decomposição.”
Embora em nenhum momento o texto tenha mencionado que se tratava de um necrotério, mas de uma estação de pesquisa forense (locais bem distintos), foi informado que cerca de 40 cadáveres foram comidos por completo por dois gatos!
Para completar, o texto também citou uma antropóloga forense chamada Carolyn Rando! Ela teria afirmado que os gatos, sejam domesticados ou selvagens, vão partir para cima dos humanos assim que estes morrerem!
Entretanto, será que tudo isso é realmente verdadeiro? Dois gatos comeram cerca de 40 cadáveres por completo? Esse estudo realmente existiu? Descubra agora, aqui, no E-Farsas!
Verdadeiro ou Falso?
Falso! O material publicado no “Mega Curioso” é uma completa lambança! Em primeiro lugar, o título é completamente sensacionalista. Quem o lê pensa que um bando de gatos entrou num necrotério e devorou cadáveres. Isso não aconteceu! Em segundo lugar, o texto faz os leitores pensarem que gatos selvagens devoraram cerca 40 cadáveres por completo. Isso também não aconteceu! Em terceiro lugar, ele dá a entender que os pesquisadores descobriram, que tanto os gatos selvagens quanto os domésticos, podem devorar seus donos por meio de um estudo! E, adivinhem só? Isso também não aconteceu, porque o tal estudo citado se limitou a apenas a dois gatos selvagens que se alimentaram de dois corpos de pessoas idosas, que por sua vez foram deixados para decompor ao ar livre.
Como se tudo isso não bastasse, a opinião da antropóloga forense Carolyn Rando também foi tirada de contexto! Ela não tem nenhuma relação com o estudo, sua opinião não foi estritamente relacionada a gatos e, ainda por cima, foi emitida em janeiro de 2015, num artigo do site norte-americano “Buzzfeed” (no decorrer do artigo falaremos rapidamente sobre isso).
Enfim! Para entender corretamente toda essa história é necessário que a expliquemos com calma para vocês!
Uma Dose de Realidade
Em meados de janeiro deste ano, diversos sites internacionais (1 | 2 | 3) repercutiram um estudo chamado “The Scavenging Patterns of Feral Cats on Human Remains in an Outdoor Setting“, publicado em novembro de 2019, no “Journal of Forensic Sciences” — periódico oficial da Academia Americana de Ciências Forenses.
Nele, os pesquisadores reportaram tão somente dois casos envolvendo dois gatos selvagens, que se alimentaram de restos mortais humanos — provenientes de duas pessoas idosas — na Estação de Pesquisa de Investigação Forense (FIRS), da Universidade Colorado Mesa, em Whitewater, no estado norte-americano do Colorado. Portanto, conforme dissemos anteriormente, nada de um bando de gatos devorando os corpos de dezenas de pessoas num necrotério.
Aliás, ao citarem “gatos selvagens” os pesquisadores presumiram se tratar de gatos que nasceram e cresceram na natureza, ou seja, gatos que nunca foram domesticados. O estudo não reportou nenhuma descoberta direta envolvendo gatos domésticos, por exemplo.
Fazenda de Corpos
No local funciona aquilo que se conhece no meio forense como “fazenda de corpos”. O objetivo principal dessas “fazendas” é entender como o corpo humano se decompõe e o que acontece no ambiente que o rodeia durante esse processo. Assim sendo, a compreensão desse processo fornece, por exemplo, dados para a resolução de crimes ou para a melhoria das técnicas de identificação de pessoas. É bom deixar claro que os corpos utilizados geralmente são de pessoas que consentiram em doar seus corpos para a ciência após a morte. Em outros casos, esse consentimento partiu dos familiares de tais pessoas. De qualquer forma, nem de longe o local se trata de um necrotério.
Uma vez que há corpos se decompondo ao ar livre, estes por sua vez atraem diversas espécies de animais, oportunistas ou não, que acabam sendo flagradas por câmeras instaladas pelos pesquisadores. Anteriormente, por exemplo, linces tinham sido vistos se alimentando de restos mortais humanos na chamada Instalação de Ciência Forense Aplicada, na Universidade Estadual de Sam Houston, no Texas!
Interesses Específicos
Enfim, no recente estudo publicado no “Journal of Forensic Sciences” os pesquisadores relataram a forma pela qual os dois corpos, o de um senhor e uma senhora, que morreram com 70 e 79 anos, respectivamente, tinham sido parcialmente comidos por dois gatos selvagens. Devido à prevalência de gatos selvagens nos Estados Unidos (e no mundo), os pesquisadores alegaram que era importante entender os padrões e comportamentos desses gatos para distinguir entre danos teciduais perimortem e postmortem em cadáveres expostos a ambientes externos.
Em ambos os casos, os gatos selvagens se alimentaram de tecidos moles dos corpos, e durante os primeiros estágios de decomposição. Curiosamente, cada gato vasculhou um corpo específico por mais de duas semanas – sem demonstrar nenhum interesse nos mais de quarenta corpos no mesmo estado de composição nos arredores. Esse comportamento foi atribuído a ideia de que os gatos selvagens preferem uma fonte de alimento que seja familiar.
O Comportamento dos Gatos Selvagens em Relação aos Corpos
O corpo da senhora de 79 anos foi colocado na área externa da FIRS após treze dias de sua morte. Após cinco dias na área externa, as câmeras ativadas por movimento flagraram um gato listrado dilacerando o braço da doadora. Aliás, esse gato continuou se alimentando desse corpo por cerca de 35 dias. Inicialmente, foi consumido o tecido do braço esquerdo e da área adjacente do peito, concentrando-se nas camadas dérmicas e gordurosas. Somente após consumir a maior parte do tecido adiposo no braço, o gato consumiu tecido muscular, eventualmente expondo o osso úmero.
O corpo do senhor de 70 anos foi colocado na área externa da FIRS após onze dias de sua morte. Com relação a esse corpo, os pesquisadores flagraram um gato preto vasculhando o abdômen inferior, além do ombro e do seu braço esquerdo. Após a primeira vez, o mesmo gato retornou ao corpo várias vezes durante 10 das 16 noites seguintes. Após um hiato de um mês, o gato preto voltou por mais duas noites.
No estudo liderado por Sara Garcia, estudante da Universidade Colorado Mesa, ela e seus colegas relataram que o processo de remoção de tecido diferiu entre os dois gatos. O gato listrado puxou o tecido externo para fora para obter acesso à derme subjacente, enquanto o gato preto consumiu camadas de tecido, superficial a profunda, sem demonstrar preferência por uma ou outra camada. Ambos os gatos, no entanto, pararam de se alimentar dos corpos entre 21 e 40 dias de decomposição, na chamada “decomposição úmida”.
Padrões que Não Podem Ser Atribuídos a Todos os Gatos Selvagens
Na conclusão os pesquisadores disseram que o estudo era extremamente limitado! Isso porque se tratavam apenas de dois gatos selvagens, ou seja, o comportamento não podia ser extrapolado para todos demais. No entanto, o estudo devia ser considerado ao pensar em danos nos tecidos em cadáveres.
Além disso, segundo Sara Garcia, a presença dos dois gatos selvagens ocorreu nos meses mais frios do ano, quando a oferta de alimento podia estar limitada. Num clima diferente e com diferentes fontes de alimento para as populações de gatos selvagens, poderia haver diferenças nos comportamentos quanto ao tempo e ao padrão utilizado para se alimentar.
O Mapa da Mentira: A Origem do Erro da História Divulgada pelo Site “Mega Curioso”
A responsável pelo artigo publicado no site “Mega Curioso” utilizou como única fonte um site norte-americano chamado “All Thats Interesting”. E, nesse ponto, mora o primeiro problema. Isso porque jamais deveríamos utilizar uma única fonte para elaborarmos uma notícia. Ainda mais de um site de curiosidades gerais.
Portanto, essa série de omissões e distorções ao longo do caminho, associada a uma falta de verificação/preocupação/pesquisa por parte da responsável pela notícia no “Mega Curioso” só poderia resultar na lambança que vimos.
E a Onde Entra a Carolyn Rando Nessa História?
Em lugar nenhum! A antropóloga forense Carolyn Rando não possui nenhuma relação com esse recente estudo. Em janeiro de 2015, ela apareceu num artigo do site norte-americano “BuzzFeed News”, que abordava “histórias horripilantes de animais de estimação que devoraram seus donos”. No artigo, ela não se referiu somente a gatos, mas também a cachorros, hamsters e até mesmo as bactérias presentes no próprio corpo humano.
No texto publicado pelo “Mega Curioso”, Carolyn Rando aparece como se tivesse dito que os gatos, domesticados ou selvagens, vão partir para cima dos humanos assim que estes morrerem. Em outras palavras, segundo a antropóloga, se você morresse, seus gatos não teriam problemas em comer seu cadáver. Contudo, novamente, ela não disse isso estritamente sobre os gatos, e para piorar a situação faltou todo um contexto por trás de sua participação no referido artigo.
O Que a Carolyn Rando Realmente Disse Naquela Época?
Eis, o que ela realmente disse por email:
“Sim, seus animais de estimação o comerão quando você morrer, e talvez um pouco antes do que você gostaria de pensar. Eles tendem a procurar o pescoço, o rosto e todas as áreas expostas primeiro e, em seguida, se não forem descobertos a tempo, poderão comer o todo o resto“
E por que isso acontece? Instinto! Segundo Carolyn, quando você morre, o animal geralmente fica angustiado e pode tentar ‘acordá-lo’; eles vão lamber e beliscar o seu rosto. Depois de terem lambido o suficiente, eles podem tirar sangue; isso pode desencadear um comportamento instintivo, resultando em mais ferimentos e, eventualmente, consumo de tecido humano. Não é porque eles simplesmente queriam devorá-lo e só estavam esperando uma oportunidade para isso! Enfim, também é possível que haja o consumo de tecido e carne humana simplesmente porque os animais estavam com fome, geralmente após muito tempo sem alimentação adequada.
No caso do gatos, a situação é um pouco mais complexa, mas isso se deve, em parte, ao menor número de casos publicados disponíveis do que existe em relação ao cães. De qualquer forma, acredita-se que isso aconteça pelas mesmas razões citadas anteriormente. Então, nada de sair por aí dizendo que o seu gato ou de alguém só está esperando alguém morrer para se alimentar dessa pessoa.
Conclusão
Falso! O material publicado no “Mega Curioso” é uma completa lambança! Em primeiro lugar, o título é completamente sensacionalista. Quem o lê pensa que um bando de gatos entrou num necrotério e devorou cadáveres. Isso não aconteceu! Em segundo lugar, o texto faz os leitores pensarem que gatos selvagens devoraram cerca 40 cadáveres por completo. Isso também não aconteceu! Em terceiro lugar, ele dá a entender que os pesquisadores descobriram, que tanto os gatos selvagens quanto os domésticos, podem devorar seus donos por meio de um estudo! E, adivinhem só? Isso também não aconteceu, porque o tal estudo citado se limitou a dois gatos selvagens, que se alimentaram de dois corpos de pessoas idosas, que por sua vez foram deixados para decompor ao ar livre.
Como se tudo isso não bastasse, a opinião da antropóloga forense Carolyn Rando também foi tirada de contexto! Ela não tem nenhuma relação com o estudo, sua opinião não foi estritamente relacionada a gatos e, ainda por cima, foi emitida em janeiro de 2015, num artigo do site norte-americano “Buzzfeed”.
Jornalista e colaborador do site de verificação de fatos E-farsas entre janeiro de 2019 e dezembro de 2020. Entre junho de 2015 e abril de 2018, trabalhei como redator do blog AssombradO.com.br, além de roteirista do canal AssombradO, no YouTube, onde desmistificava todos os tipos de engodos pseudocientíficos e casos supostamente sobrenaturais.