Israel bombardeou recentemente bibliotecas e um centro cultural na Palestina?
No início de maio de 2019 começou a circular uma informação impactante do ponto de vista cultural no Oriente Médio. Milhares de pessoas compartilharam, que as Forças de Defesa de Israel teriam bombardeado um centro cultural e duas bibliotecas. Aliás, uma delas seria a Biblioteca Nacional da Palestina!
O resultado? Dezenas de milhares de livros e documentos históricos teriam sido perdidos. Nesse sentido, muitos usuários nas redes sociais questionaram a seletividade por parte da imprensa e das demais pessoas. Foi inclusive citado o incêndio na Catedral de Notre-Dame, em Paris. Se as pessoas ficaram revoltadas com o incêndio, também deveriam ficar revoltadas com o que teria acontecido na Palestina.
Nesse sentido, a publicação de uma página chamada “Revolution News” (arquivo), no Facebook, que por sua vez possui mais de 1,2 milhão de seguidores, já obteve mais de 6.500 compartilhamentos desde a última segunda-feira (13).
Na verdade, a imagem utilizada é uma captura de tela referente a um retuíte de uma outra usuária (arquivo), do dia 5 de maio. Até o momento o referido tuíte já obteve mais de 23 mil compartilhamentos.
Entretanto, será mesmo que Israel bombardeou recentemente um centro cultural e duas bibliotecas, na Palestina? Será que essas informações realmente procedem? Dezenas de milhares de livros e documentos históricos foram destruídos? Descubra agora, aqui, no E-Farsas!
Verdadeiro ou Falso?
Parcialmente falso! É necessário ter um pouco de paciência e cautela para entender o que as fotos e as informações divulgadas realmente representam. Vamos tentar explicar isso direitinho para vocês.
As duas fotos divulgadas acima são verdadeiras, mas não se referem a um local chamado “National Cultural Center”. A foto da esquerda mostra como era o Instituto de Artes e Cultura Said Al-Mishal, na cidade de Gaza, na Palestina. Já a foto da direita mostra os escombros desse instituto após um ataque aéreo das Forças de Defesa de Israel, no dia 9 de agosto de 2018. Confira um vídeo publicado pela “Sadeel media“, no YouTube, onde mostra o exato momento do ataque:
Fundado em 2004, esse instituto, em princípio, servia basicamente para apresentações artísticas, envolvendo teatro, música e dança. Não era um local destinado ao armazenamento de obras literárias originais ou manuscritos importantes para a cultura árabe ou do povo palestino, embora possuísse uma biblioteca e escritórios para associações artísticas.
A Versão Apresentada pelas Forças de Defesa de Israel
Em nota oficial, as Forças de Defesa de Israel alegaram que o prédio, de cinco andares, era utilizado para fins militares pelas forças de segurança interna do grupo terrorista Hamas. Segundo a nota, a unidade de segurança interna do Hamas é responsável por todas as operações de segurança realizadas na Faixa de Gaza, sendo considerada um ramo executivo da liderança política do grupo terrorista.
Foi mencionado, que o prédio serviria como o escritório de membros ativos da unidade. Uma parte significativa de membros da unidade também seria de agentes militares da organização terrorista. Nesse sentido, foi até mesmo destacado o primeiro andar do prédio.
O ataque realizado por um caça israelense fez parte de uma escalada de conflitos entre o Hamas e as Forças de Defesa de Israel entre os dias 8 e 9 de agosto de 2018. Também serviu como resposta aos foguetes que o Hamas disparou contra o território israelense, incluindo o lançamento de um foguete em direção à cidade de Be’er Sheva, localizada a mais de 40 km da Faixa de Gaza. Segundo Ashraf al-Qidra, porta-voz do Ministério da Saúde da Palestina, cerca de 18 pessoas teriam ficado feridos devido ao ataque. Caso queiram saber maiores detalhes, cliquem aqui (PDF, em inglês).
Os Moradores Locais Sabiam que o Prédio Seria Bombardeado?
É interessante notar, que foram divulgadas diversas filmagens nas redes sociais de momentos antes do prédio ser bombardeado. Assim sendo, ficamos com a sensação, que algumas pessoas sabiam ou tinham a nítida impressão que o prédio seria bombardeado. Porém, isso tem explicação! Os moradores da região receberam alertas das Forças de Defesa de Israel de que o prédio seria atingido cerca de duas horas antes do ataque aéreo!
Geralmente, os militares ligam para os moradores locais e pedem para que eles se afastem do local, que será alvo de um ataque. Israel costuma alegar, que membros do Hamas impedem que moradores deixem regiões de ataque, justamente para que inocentes morram e acabem servindo como propaganda política do grupo.
A Versão do Diretor Geral do Instituto de Artes e Cultura Said Al-Mishal
Segundo o britânico “The Guardian”, Sameer al-Mishal, diretor geral do instituto, descartou a presença de forças de segurança do Hamas no interior do prédio, onde cerca de 1.500 pessoas trabalhavam ou eram voluntárias. De acordo com ele, desde sua inauguração, o prédio vinha sendo um baluarte da liberdade de expressão e do pensamento progressista, que acabou colocando seus funcionários em apuros diante da rígida ideologia do Hamas. Em 2007, um braço local do Hamas cancelou sua licença e Al-Mishal não pôde reabrir até 2009.
“Enfrentamos muitos problemas com a polícia e interferências nas peças e performances. Pessoalmente, fui interrogado pelo Hamas; uma vez fui preso por três dias“, disse Sameer al-Mishal.
Segundo o diretor geral, a área no primeiro andar do prédio, apontada pelas Forças de Defesa de Israel, era destinada a troca de roupas. Ficava bem atrás do palco. Ele também disse, que não fazia sentido o Hamas estar presente no local, visto que eles desafiavam as regras deles.
Em nota oficial, a Rede Palestina de Artes Performáticas acusou os militares israelenses de deliberadamente alvejar a cultura palestina.
“O centro era um símbolo da herança cultural palestina e foi intencionalmente alvejado pela ocupação israelense, porque a arte e a cultura reforçam e fortalecem a identidade nacional e cultural dos palestinos“, disseram.
No entanto, alguns moradores em Gaza sugeriram uma terceira possibilidade: o prédio teria sido confundido com um outro escritório das forças de segurança interna do Hamas na mesma área.
E a “Biblioteca Nacional da Palestina”?
A alegação de que Israel destruiu a “Biblioteca Nacional da Palestina” é completamente falsa! Provavelmente, isso se refere a um bombardeio ocorrido em meados de julho de 2018 contra uma instalação de treinamento do Hamas em Gaza. Segundo o site do jornal israelense “Yedioth Ahronoth”, um prédio inacabado de cinco andares, originalmente planejado para ser uma “biblioteca nacional”, abrigaria uma rede de túneis do grupo terrorista.
Confira um trecho do que foi publicado:
“A instalação de treinamento do Hamas em Gaza, que a IAF (Força Aérea de Israel) atacou no sábado (14/07) deveria ser a “Biblioteca Nacional Palestina”, disse a IDF (Forças de Defesa de Israel).
A instalação, localizada próxima da mesquita Sheikh Zayed, é um prédio inacabado e abandonado de cinco andares, no campo de refugiados de al-Shati, que deveria ser usado para serviços públicos ou governamentais para os palestinos, ou pelo menos para habitação.
Em vez disso, a IDF disse que o prédio tem sido usado há anos como uma instalação de treinamento em guerra urbana pelo Hamas e, nos últimos meses, o grupo também começou a cavar túneis abaixo do prédio.
Um túnel foi cavado sob o prédio, que se conecta à enorme rede de túneis subterrâneos do Hamas na Faixa de Gaza.“
Portanto, embora o prédio possa ter sido destinado a abrigar uma “Biblioteca Nacional Palestina”, aparentemente nunca exerceu essa função. O prédio estava inacabado e sem nenhuma utilidade ou atividade pública.
Existe uma “Biblioteca Nacional da Palestina”?
Aparentemente sim, e não tem nada a ver com esse prédio que foi bombardeado! Ao fazermos uma rápida busca no Google, nos deparamos com uma “Biblioteca Nacional Palestina”, que foi inaugurada em novembro de 2017, na cidade palestina de Sarda.
Em um artigo na Wikipedia, é possível ler que “a função da Biblioteca Nacional Palestina é coletar, preservar e monitorar a herança e a criatividade palestina, dentro e fora da Palestina, sendo um repositório de documentos e coleções de títulos.” Ainda segundo o artigo, “a Biblioteca Nacional é uma mensagem do povo palestino, que se orgulha sua cultura ao longo dos tempos, e a cultura é parte integrante da resistência.”
Houve inclusive uma ampla cobertura da imprensa, conforme podemos ver através de algumas reportagens publicadas em canais no YouTube:
Em maio de 2018, essa “Biblioteca Nacional da Palestina” também sediou uma Feira Internacional do Livro.
Não encontramos nenhuma informação de que esse prédio tenha sido bombardeado desde então. Evidentemente, conforme vocês podem perceber, trata-se de dois prédios distintos em localidades completamente diferentes.
E a “Biblioteca Azhar”?
A alegação de que Israel destruiu a “Biblioteca Azhar” é completamente falsa! Provavelmente, a referência aqui seja a biblioteca da Universidade Al-Azhar, na cidade de Gaza, porém nada indica que essa biblioteca tenha sido destruída pelas Forças de Defesa de Israel. No site oficial da instituição de ensino não há qualquer menção sobre isso. Inclusive, há uma página interna dedicada a estrutura da biblioteca.
Também existe uma universidade chamada “Al-Azhar” no Egito, mas nada indica que a biblioteca da instituição tenha sido destruída.
Bônus: Uma Rápida Informação Sobre o Hamas
O nome Hamas é um acrônimo em árabe de “Harakat al-Muqāwama al-Islāmiyya“, que significa “Movimento de Resistência Islâmico”. Em árabe a palavra Hamās (حماس) se traduz aproximadamente como “entusiasmo, ardor, fervor, zelo.” No início, o grupo aliava a luta contra Israel à assistência social, o que lhe garantiu a simpatia de muitos palestinos. Com o passar do tempo foram adotadas práticas extremamente covardes, assim como o terrorismo suicida contra soldados e colonos nos territórios ocupados, e a explosão de veículos, tais como ônibus, com pessoas inocentes dentro.
A relação entre Israel e a Palestina é extremamente complexa e seria impossível explicar em uma única postagem. Provavelmente, seria necessário um ou mais livros, e muitos anos de um estudo aprofundado. O importante aqui é entender, que o Hamas não é um “movimento de resistência” bondoso ou solidário. É uma organização de cunho terrorista, que possui diversos braços (político, militar e social), e que não se importa em sacrificar quem quer que seja ou quantas pessoas forem necessárias para alcançar seus objetivos.
Algumas Notícias Nesse Sentido
Basta ler algumas notícias publicadas sobre o grupo. Exemplos, não faltam. Site da revista “Veja”, em julho de 2014: “Vinte foguetes são achados em escola controlada pela ONU“. Em setembro do mesmo ano, o Portal R7 publicou a seguinte notícia: “Hamas admite ter usado regiões de escolas e hospitais para atacar Israel e reconhece erro.”
Até mesmo um texto publicado pela revista “Carta Capital” admitiu que o Hamas tinha em seu poder cerca de 2 milhões de escudos humanos (basicamente a população da Faixa de Gaza). Eis um trecho do que foi publicado:
“Em 17 de julho, reportagem do jornal ‘The Washington Post’ revelou que o subterrâneo do hospital Al-Shifa, o mais importante da cidade de Gaza, se tornou o ‘quartel general dos líderes do Hamas, que podem ser vistos nos corredores e escritórios’. O pouco destaque dado a essa informação na imprensa internacional indignou publicações pró-Israel, como a revista judaica ‘Tablet’, que fez uma longa reportagem detalhando como os jornalistas estrangeiros são ameaçados pelo Hamas.
(…) Na semana passada, o jornal francês ‘Libération’ tirou do ar uma reportagem no qual seu colaborador Radjaa Abou Dagga descrevia como fora ameaçado por integrantes do Hamas. A alteração se deu a pedido do jornalista, que tem familiares em Gaza. O jornal ‘Algemeiner’, judaico como a ‘Tablet’, teve acesso ao relato de Dagga e conta que o jornalista foi interrogado dentro do hospital Al-Shifa. Na terça-feira 29, o repórter italiano Gabriele Barbati afirmou que os jornalistas estrangeiros em Gaza são mesmo ameaçados pelo Hamas. Pelo Twitter, Barbati confirmou que um ataque na segunda-feira 28 contra o campo de refugiados de Shati, na cidade de Gaza, que matou nove crianças, foi fruto de um erro do Hamas, e não das forças israelenses.“
Israel Também Possui sua Parcela de Responsabilidade
Evidentemente, Israel também possui uma boa parcela de responsabilidade, ou seja, não é completamente vítima em todos esses anos de conflitos. Um exemplo recente foi uma notícia publicada em fevereiro de 2019, pelo site do jornal “O Globo”, intitulada “Israel pode ter cometido crimes contra a Humanidade em Gaza, para comissão da ONU”
Em termos culturais, há inclusive alegações de que 30 mil livros, manuscritos e até mesmo jornais deixados para trás por palestinos, que moravam na parte ocidental de Jerusalém, durante a implantação do Estado de Israel, teriam “saqueados”, oficialmente ou não, e uma parte acabou parando na Biblioteca Nacional de Israel. Entre 40 a 50 mil livros também teriam sido “saqueados” de casas nas cidades de Jaffa, Haifa, Tiberíades, Nazaré, entre outras.
Segundo um pesquisador chamado Gish Amit, cerca de 26 mil livros teriam sofrido um destino pior: teria sido decidido em 1957, que tais livros eram “inadequados para uso em escolas árabes em Israel, (porque) alguns deles continham materiais incitadores contra o Estado e, portanto, sua distribuição ou venda poderia causar danos ao Estado.” Esses livros teriam sido simplesmente transformados em papel reciclado.
Conclusão
A informação que Israel teria destruído a “Biblioteca Nacional Palestina”, a “Biblioteca Azhar” e o “Centro Nacional de Cultura”, juntamente com dezenas de milhares de livros e documentos históricos é parcialmente falsa! O único elemento verdadeiro dessa história são as fotos, que fazem referência ao Instituto de Artes e Cultura Said Al-Mishal, em Gaza. O prédio do instituto foi bombardeado por Israel em 9 de agosto de 2018, sob o pretexto de servir militarmente ao Hamas. O diretor-geral do instituto, no entanto, negou qualquer envolvimento com o grupo. De qualquer forma, embora possuísse uma biblioteca, o local não era destinado ao armazenamento de obras literárias originais ou manuscritos importantes para a cultura árabe ou do povo palestino.
Ao pesquisarmos sobre a “Biblioteca Nacional Palestina” e a “Biblioteca Azhar” encontramos referências a edificações, que permanecem de pé e que não sofreram quaisquer ataques por parte de Israel. Especificamente sobre a “Biblioteca Nacional Palestina”, nos deparamos com um bombardeio ocorrido a um prédio inacabado e abandonado, em julho de 2018, que originalmente planejava-se abrigar uma “biblioteca nacional”. Porém, segundo as Forças de Defesa de Israel, o prédio acabou servindo como área de treinamento do Hamas durante anos. Não há evidências, que o prédio tivesse funcionado algum dia como uma biblioteca ou abrigado acervos literários.