Morador de Cruzeiro/SP alega que não teve COVID-19! Será verdade?
Na semana passada, mais precisamente no dia 4 de junho de 2020, um morador da cidade de Cruzeiro/SP gravou um vídeo um tanto quanto alarmante. No vídeo, o morador mostrou que havia feito um teste, cujo resultado foi positivo, mas outros três testes, realizados em datas diferentes, deram negativo! Assim sendo, ele questionou a veracidade dos resultados, taxando-os de duvidosos. E, no final do vídeo, o morador alegou enfaticamente que, no seu entendimento, não havia tido COVID-19!
Outro detalhe é que esse vídeo foi disseminado sem qualquer tipo de apuração por uma página local chamada “Portal Cruzeiro” (arquivo), pretensamente jornalística, obtendo mais de 23 mil visualizações e cerca de 500 compartilhamentos!
Confira abaixo a publicação:
Assim como o vídeo (iremos destrinchá-lo daqui a pouco):
Como consequência, inúmeros usuários passaram a acreditar que o morador não teve COVID-19! Isso acabou abrindo, portanto, um perigoso precendente!
Confira abaixo alguns comentários que extraímos da publicação do “Portal Cruzeiro”:
Uma Rápida Contextualização
O caso desse morador é bem emblemático e, provavelmente, servirá de exemplo para tantos outros casos semelhantes, que podem estar acontecendo pelo Brasil. Para que vocês possam entendê-lo melhor, vamos a uma rápida contextualização.
No dia 25 de maio de 2020, a Secretaria de Saúde de Cruzeiro/SP (SEMUS) publicou uma nota oficial em sua página no Facebook (arquivo). Nela, a secretaria dizia que um morador de um condonomínio da cidade chamado Serra Verde havia passado por atendimento no dia 19 de maio, no Hospital Santa Casa Cruzeiro, e na ocasião foi coletado material para análise.
A partir da coleta do material o morador passou a ser tratado como um caso suspeito de COVID-19, e foi orientado a fazer o chamado isolamento domiciliar, ou seja, ficar em casa.
Furando a Quarentena
Segundo a nota, o morador afirmou a um grupo de amigos, clientes e vizinhos que não respeitou essa orientação! E o que aconteceu? O resultado do exame foi positivo! Assim sendo, a SEMUS solicitou a todos que tiveram contato com o morador, que entrassem em contato com a secretaria para o devido monitoramento.
O Áudio que Vazou nas Redes Sociais
Ainda no dia 25 de maio, um áudio desse cidadão vazou nas redes sociais. Nele, o morador alegou que não ficou em isolamento, porque suas condições financeiras ou ocupacionais no seu condomínio não lhe permitiam, algo que gerou muita revolta entre os demais moradores da cidade. Para agravar ainda mais a situação, ele teria participado da distribuição de marmitex no condomínio numa ação promovida por terceiros.
Inicialmente, no áudio o morador alegou que estava bem, mas na sequência ele disse acreditar ter pegado o novo coronavírus das filhas, que tinham apresentado os mesmos sintomas que ele, cerca de quatro ou cinco dias antes. Ele, inclusive, chegou a aventar a possibilidade das filhas terem pegado de outras crianças assintomáticas.
Confira o áudio abaixo:
Portanto, o vídeo divulgado em 4 de junho de 2020 gerou uma narrativa, na qual o morador não teria tido COVID-19 e as autoridades de saúde teriam errado em mantê-lo em quarentena ou provocado “desnecessariamente” toda polêmica em torno do seu nome na cidade.
Entretanto, será que o morador realmente não teve COVID-19? Os testes para COVID-19 não são confiáveis? Descubra agora, aqui, no E-Farsas!
Verdadeiro ou Falso?
Tudo indica que o morador de Cruzeiro/SP teve COVID-19! Toda essa história de que os três resultados negativos apresentados seriam suficientes para mostrar que ele não teria tido o novo coronavírus é improcedente.
Isso porque o primeiro teste, cujo resultado deu positivo, foi um RT-PCR (swab nasofaríngeo). Já os demais testes que deram negativo foram os chamados testes rápidos, que não devem ser utilizados, isoladamente, para alegar que uma pessoa teve ou não COVID-19!
Destrinchando e Explicando os Eventos Citados no Vídeo
Para explicar melhor isso a vocês é necessário destrinchar o vídeo e mostrar a realidade por trás dos testes e das alegações feitas pelo cidadão. É justamente isso que iremos conferir a partir de agora!
O Primeiro Exame
O primeiro exame que o cidadão mostrou no vídeo é o RT-PCR (swab nasofaríngeo), realizado pelo Insituto Adolfo Lutz, em Taubaté/SP. A coleta foi feita no dia 19/05 e o exame foi conferido e liberado no dia 23/05. O resultado? Positivo!
Nesse ponto é importante ressaltar que o RT-PCR faz a detecção direta do vírus em secreção respiratória. Ele é o padrão-ouro para diagnóstico da infecção aguda sintomática. O teste avalia a presença de RNA viral na amostra. Esse exame é recomendado para pessoas que possuam sintoma da COVID-19, com duração entre 3 e 7 dias (pico de sensibilidade no quarto dia).
Casos com RT-PCR positivo não necessitam realizar investigação diagnóstica complementar, ou seja, esses casos devem ser tratados como casos confirmados de COVID-19. Assim sendo, de cara isso responde qualquer eventual dúvida em relação ao exame. Sim, o cidadão era um caso confirmado de COVID-19.
A partir do momento que há a suspeita, o indivíduo deve permanecer em isolamento domiciliar mesmo sem saber o resultado do exame. Se der positivo, as autoridades de saúde acertaram. Se der negativo, as autoridades também acertaram, porque zelaram pela saúde das demais pessoas. Isso ficou claro? Por isso que a divulgação de “mapa de infectados” ou querer saber desesperadamente quem é a pessoa infectada sempre dá problema. Pessoas são discriminadas, áudios vazam, linchamentos virtuais ocorrem e assim por diante. Num cenário ideal, testar e rastrear contatos deveria aliar privacidade com eficácia, no entanto tais cenários ideais são praticamente utópicos em nosso país.
E se o Resultado do RT-PCR Fosse Negativo?
Se o resultado desse primeiro exame desse negativo, ainda não excluiria a então possibilidade do cidadão ter contraído o novo coronavírus! Essa observação aparece no próprio exame! Isso porque o RT-PCR é capaz de detectar apenas a infecção ativa naquele momento, em específico, da coleta do exame. Além disso, a sensibilidade clínica é variável conforme o tipo de amostra, manifestações clínicas do paciente e qualidade pré-técnica da amostra.
Então, o que fazer se o resultado der positivo ou negativo? Procure um médico! O médico é o profissional de saúde que deve orientar como cada pessoa, diante de toda uma investigação muito mais ampla, deve proceder.
O Segundo Exame
Um segundo exame apresentado pelo cidadão foi realizado no dia 29/05, ou seja, apenas dez dias após a coleta para o exame RT-PCR.
Esse exame que o morador apresentou é o chamado “teste rápido”. Seja por ingenuidade, falta de conhecimento ou má-fé, o cidadão “esqueceu” de mencionar um “pequeno” detalhe escrito no papel:
“Um resultado não reagente para anticorpos anti-SARS-CoV-2 não exclui a COVID-19 e não deve ser utilizado isoladamente para suspensão do isolamento domiciliar. Resultados não reagentes podem ocorrer em pacientes assintomáticos ou sintomáticos com SARS-CoV-2 detectado no exame de RT-PCR em qualquer momento durante a evolução da infecção, principalmente, mas não exclusivamente, nos primeiros 10 dias do início dos sintomas.“
Os anticorpos IgM indicam infecção na fase ativa, pois eles são os primeiros anticorpos a aparecer quando vírus ou bactérias nocivas atacam o nosso corpo. Já os anticorpos IgG, também são uma resposta a vírus e bactérias, porém atuam na fase mais tardia da infecção.
Quando há um resultado negativo (não reagente), a ausência de infecção não pode ser descartada. Isso porque, diante de um RT-PCR positivo, pode ser que o morador ainda não tivesse produzido anticorpos em quantidade suficiente para serem detectados pelo teste. E, como se isso não bastasse, o teste pode ter apresentado um resultado não compatível com a realidade, devido a limitação tecnológica do próprio teste!
Explicação em Vídeo
Esse vídeo do biólogo Átila Iamarino responde bem a esse questionamento:
O Terceiro e Quarto Exames
E isso tudo nos leva ao terceiro e quarto exames apresentados no vídeo, que teriam sido feitos na quinta-feira passada (4). De cara podemos ver novamente um detalhe não mencionado pelo cidadão e que consta em ambos os exames:
“Resultados negativos não excluem SARS-CoV-2“
O terceiro teste foi o chamado “ONE STEP COVID-2019 TEST” (IMUNOCROMATOGRAFIA) fabricado pelo laboratório chinês Guangzhou Wondfo Biotech Co., Ltd. e importado e distribuído no Brasil pela CELER BIOTECNOLOGIA S/A. A sensibilidade desse teste é de apenas 55%, quando utlizadas amostras de sangue capilar, ou seja, é mais ou menos como jogar uma moeda para cima. Isso é péssimo! Por outro lado a sensibilidade aumenta muito se for utilizado serum (soro) ou plasma (96%).
Isso sem contar, novamente, com as limitações do próprio teste!
Já o quarto exame (COVID-19 IgG/IgM ECO Teste) é basicamente o mesmo esquema do segundo.
Qual a Explicação para o que Aconteceu?
Antes de entrar na explicação é importante deixar BEM CLARO, que os testes rápidos — segundo, terceiro e quarto exames — não servem para diagnóstico (confirmar ou descartar) de infecção por COVID-19 de forma isolada. Não adianta mostrar exame negativo (não reagente) de teste rápido na tela.
- Dizer que a infecção ainda poderia estar numa fase inicial, onde o corpo ainda não desenvolveu anticorpos suficientes para aparecer nos testes rápidos. Isso também pode acontecer em fases mais tardias da doença, mas depende de outros dados clínicos;
- Dizer que a pessoa foi infectada, teve apenas um infecção leve que já terminou e a pessoa produziu uma quantidade muito baixa de anticorpos, que não foram detectados pelos testes;
- Dizer que os três testes rápidos falharam por diferentes ou pelas mesmas razões! É possível que isso aconteça, mas isso não é necessariamente culpa das autoridades de Saúde de Cruzeiro, porque o país inteiro e boa parte do mundo faz uso desses mesmos exames.
Ressaltando…
Em relação aos testes rápidos os resultados falsamente positivos ou negativos podem ocorrer em diversos contextos, sobretudo quando as amostras são coletadas antes de 14 dias após o início da doença. O tempo de aparecimento desses anticorpos é variável de pessoa a pessoa e parece ser influenciado pela gravidade do quadro clínico. Desse modo, a correta solicitação e interpretação dos resultados é fundamental.
O Que Não Dá Para Dizer?
A única coisa que não dá para dizer, diante de um quadro clínico compatível com COVID-19 e um resultado RT-PCR positivo, é que a pessoa não teve COVID-19! Para tentar questionar isso de alguma forma teria sido necessário que o resultado do RT-PCR saísse rápido e fossem feitas duas contraprovas (também RT-PCR) num intervalo curto de tempo ou preferencialmente no mesmo dia!
A demora, custo e quantidade de insumos disponíveis (não há teste para todo mundo na rede pública) são as principais razões pelas quais o protocolo é considerar o cidadão, de imediato, como infectado por COVID-19. É assim no Brasil todo.
É Impossivel o RT-PCR Falhar num Resultado Positivo?
Em termos gerais, o teste RT-PCR para COVID-19 é muito específico. Muito, mesmo. Para vocês terem uma ideia, ainda que fosse o SARS-CoV-1, parente bem próximo do SARS-CoV-2, o teste daria negativo para COVID-19! Não é impossível que um RT-PCR falhe, assim como qualquer outro exame de biologia molecular, mas a probabilidade é ínfima. No meio de uma pandemia, racionalmente falando, ninguém deveria arriscar, independentemente do motivo que tenha.
Portanto, se há um resultado positivo para COVID-19 em um RT-PCR, você não sai de casa e não coloca a vida de ninguém em risco.
O Que Fazer Agora?
O morador deve entrar em contato com seu médico ou com as autoridades de saúde para saber quais medidas deve tomar diante desse cenário. Tudo indica, no entanto, que, atualmente ele seja um caso recuperado de COVID-19. Lembrando que não se utiliza “curado”, mas recuperado!
E a Família e Amigos que Testaram Negativo (Não Reagentes)?
No vídeo, o cidadão disse que não iria mostrar os exames da família ou de amigos, mas que os testes rápidos (sorologia) deram negativo. Bem, primeiro que não temos essa certeza, porque não vimos nenhum exame, mas vamos SUPOR que realmente deram negativo. Novamente, caímos naquele velho problema de que teste rápido negativo não serve isoladamente para confirmar ou negar infecção por COVID-19.
Além disso, pode ser que o restante da família e amigos, exceto ele e as filhas que apresentam sintomas (de acordo com aquilo que foi mencionado no áudio vazado nas redes sociais), sejam assintomáticos. Todos podem ter sido expostos a uma carga viral muito baixa, cujos sintomas foram muito leves ou passaram despercebidos, e isso acabou não gerando anticorpos suficientes para serem detectados pelos testes rápidos. Observem, por exemplo, os casos de COVID-19 no Goiás Esporte Clube: 60 pessoas foram testadas, 8 casos positivos. Todos os 8 eram assintomáticos!
Coincidência? Não, isso é o SARS-CoV-2 e o mundo ainda está lutando diariamente para entendê-lo e como funciona a dinâmica dos assintomáticos.
Se os Testes Rápidos Não Servem para Diagnóstico (confirmar ou descartar) de Infecção por COVID-19, Qual a Função Deles?
Entramos em Contato com a Secretaria de Saúde de Cruzeiro/SP
Entramos em contato com a Secretaria de Saúde de Cruzeiro/SP na manhã e na tarde de ontem (8). Questionamos se a secretaria iria comentar sobre o assunto ou se iria emitir uma nota oficial. No entanto, não tivemos nenhum retorno até o momento da publicação deste artigo. Caso isso aconteça, acrescentaremos a nota da secretaria numa futura atualização.
Atualização #1 (10/06 às 17h): Nota da Secretaria Municipal de Saúde de Cruzeiro/SP
Na manhã de hoje (10) entramos novamente em contato, mas dessa vez com a Assessoria de Imprensa da Prefeitura de Cruzeiro/SP.
Eis a nota que recebemos sobre esse caso:
“A Secretaria de Saúde (Semus) informa que o período de isolamento se faz necessário tanto para casos confirmados como para casos suspeitos. É importante ressaltar que há uma parcela da população que não terá anticorpos suficiente a serem detectados no teste rápido“
Interessante destacar que a nota da SEMUS reflete exatamente uma das hipóteses que fornecemos em nosso artigo. Assim sendo, acreditamos que não há mais o que ser comentado sobre esse episódio.
A Colaboração do Dr. Bruno Filardi
Para elaborarmos esse artigo contamos com a colaboração do Dr. Bruno Filardi! Ele é oncologista e diretor científico do Instituto do Câncer Brasil.
O Dr. Bruno vêm utilizando suas redes sociais, principalmente o Twitter, para analisar as mais diversas informações que andam circulando sobre o novo coronavírus e, sem dúvida alguma, presta um excelente serviço a sociedade, uma vez que não apenas tenta apresentar os fatos, mas os fundamenta para que fique o mais claro possível para a população.
Conclusão
Tudo indica que o morador de Cruzeiro/SP teve COVID-19! Toda essa história de que os três resultados negativos apresentados seriam suficientes para mostrar que ele não teria tido o novo coronavírus é improcedente. Isso porque o primeiro teste, cujo resultado deu positivo, foi um RT-PCR (swab nasofaríngeo). Já os demais testes que deram negativo foram os chamados testes rápidos, que não devem ser utilizados, isoladamente, para alegar que uma pessoa teve ou não COVID-19!
O vídeo do cidadão é desastroso por inúmeros motivos, mas o principal deles é que isso gera uma insegurança para a população. Disseminá-lo sem fornecer nenhuma informação médica ou científica é um ato de irresponsabilidade e faz com que as pessoas acabem acreditando em meras imagens e em discursos aleatórios. Isso pode fazer com que outras pessoas, que também passem pela mesma situação, sigam o infeliz exemplo desse cidadão e descumpram as orientações de isolamento domiciliar. Portanto, não descumpram as orientações fornecidas pelas autoridades de saúde ou pelo seu médico!