Muçulmanos comemoraram o incêndio da Catedral de Notre-Dame?
Desde que a Catedral de Notre-Dame, na França, foi atingida por um incêndio no dia 15 de abril de 2019, diversas fotos, vídeos e boatos começaram a circular na internet.
Entre as milhares de fotos tiradas por populares e fotógrafos profissionais, três foram amplamente compartilhadas por um motivo singular: a alegação de que muçulmanos estariam sorrindo diante da catedral em chamas, em uma expressão de contentamento. Confira abaixo essas três fotos, que circularam principalmente nas redes sociais e fóruns de discussão:
Entretanto, será que essas fotos são realmente verdadeiras? Será que são montagens? Descubra agora, aqui, no E-Farsas!
Verdadeiro ou Falso?
As três fotos seriam, em princípio, verdadeiras, porém há uma suspeita de adulteração em uma delas! Justamente a primeira foto que aparece nesta postagem, aquela onde dois homens aparecem sorrindo, que pertence a agência de notícias Sputnik (comentaremos sobre essa suspeita no final desta postagem). A foto, inclusive, chegou a ser divulgada publicamente pela agência, em sua página dedicada a cobertura do incêndio.
Acima da foto havia uma legenda dizendo: “Evacuation Underway at Notre Dame Cathedral Area, Paris’ Ile De la Cite – Reports” (“Evacuação em andamento na região da Catedral de Notre Dame, Ilha da Cidade de Paris – Relatos”, em português). A agência, no entanto, não divulgou o nome do fotógrafo responsável pela imagem.
Já as outras duas foram tiradas pelo fotógrafo francês Nicolas Liponne para a agência de fotojornalismo NurPhoto. Basicamente, a legenda dizia que ambas as fotos retratavam pessoas assistindo a Catedral de Notre-Dame pegando fogo, no centro de Paris.
Cabe destacar nesse ponto, que essas foram apenas duas fotos entre dezenas de outras tiradas por Nicolas Liponne. O fotógrafo realizou uma extensa cobertura durante todo o dia, e também registrou outras reações de parcelas do público que, em sua absoluta maioria, se mostravam perplexas ou consternadas.
Os Homens que Aparecem nas Fotos são Muçulmanos?
A ativista norte-americana Pamela Geller foi rápida em escrever, que muçulmanos estavam rindo enquanto as chamas destruíam a Catedral de Notre-Dame. Ela ressaltou também, que o incêndio ocorreu justamente na Semana Santa, um período extremamente importante para os cristãos. Além disso, ela comentou que jihadistas teriam se divertido com a situação, ao compartilharem imagens e vídeos, e teriam expressado contentamento em relação ao ocorrido.
Pessoas como Pamela Geller possuem um discurso pronto, basicamente contra todo e qualquer muçulmano. Ela, por exemplo, disse que todas as pessoas que aparecem sorrindo nas imagens são muçulmanos. Ela não disse em que se baseou para afirmar isso. Provavelmente, seu julgamento foi apenas baseado em estereótipos. Algo muito perigoso a se fazer. O famoso discurso do “parece ser”, “tá na cara que é”, “não parece francês, só pode ser muçulmano”, entre outras frases.
Entretanto, não temos evidências concretas de que os indivíduos sejam realmente muçulmanos. Vejam bem, não estamos dizendo que eles não sejam muçulmanos. Podem ser, mas sequer temos um conjunto probatório decente nesse sentido.
Os Homens Estão Contentes Pelo Incêndio na Catedral?
Quanto a expressão de felicidade em seus rostos também não temos evidências concretas, que seja em comemoração ao incêndio. O contexto da foto divulgada pela agência Sputnik, por exemplo, indica que pessoas estavam sendo evacuadas da área ao redor da catedral. Aparentemente, eles não “posaram” para a foto, apenas estavam saindo de uma zona de risco. Por qual motivo estavam rindo ou expressando felicidade? Não temos como afirmar.
Já nas duas outras fotos, os indivíduos aparentam “posar” no momento do clique. Eles olham diretamente para a câmera do fotógrafo Nicolas Liponne, e um deles chega a gesticular com uma das mãos. Novamente, não temos como afirmar categoricamente, que eles estivessem comemorando o incêndio, mas evidentemente é nítida a impressão de que queriam “aparecer” (no sentido de ganhar destaque) na foto. Isso pode ser considerado extremamente inapropriado por algumas pessoas, mas não quer dizer que ambos estivessem comemorando o incêndio.
Diante dessas imagens podemos apenas especular. Talvez nenhum dos homens estivesse se importando tanto assim com o incêndio da Catedral de Notre-Dame. E, mesmo considerando uma possível insensibilidade e indiferença diante da destruição de um patrimônio histórico, continuaria sendo diferente de uma comemoração.
Bônus: Muçulmanos Comemoraram o Incêndio nas Redes Sociais?
De fato, houve manifestações e reações de contentamento com o incêndio por parte de milhares de perfis, supostamente pertencentes a indivíduos árabes e muçulmanos, nas redes sociais.
Um exemplo disso aconteceu numa transmissão ao vivo realizada pela página oficial da “Brut”, um veículo de comunicação francês. Foram apenas 25 minutos de transmissão, mas que obteve cerca de 100 mil reações por parte dos espectadores. Cerca de 80 mil reagiram de maneira triste ou espantada com o incêndio. Porém, cerca de 2 mil espectadores demonstraram contentamento, através de um emoji de um rosto gargalhando.
A absoluta maioria dos perfis era composta por nomes em árabe, e muitos deles compartilhavam ou publicavam conteúdo indicando serem adeptos do Islamismo. Sim, a porcentagem é muito pequena e não temos como atestar se todos os perfis, tanto aqueles que demonstraram tristeza ou contentamento, são de pessoas reais.
Isso não quer dizer, que não tenha havido comemoração por parte de muçulmanos. Sim, houve, inclusive através de mensagens que eram enviadas durante a transmissão. Por outro lado, isso também não significa que tais pessoas representem todo o conjunto de muçulmanos ao redor do mundo e os ensinamentos do Islamismo.
Uma Situação Semelhante Ocorreu na Página Árabe do Canal “France 24”
A página árabe do canal “France 24” está repleta de comentários de usuários com nomes em árabe, possivelmente muçulmanos, e que comemoraram o incêndio (considerando exclusivamente a tradução automática do Facebook para o inglês). Novamente, não temos como atestar se todos os perfis são de pessoas reais.
A Estranha Pressa do Site “BuzzFeed News” em Alegar que Não Havia Nenhuma Evidência de que Muçulmanos Comemoraram o Incêndio
É interessante destacar que o site “Buzzfeed News” rapidamente publicou uma postagem para tratar das “notícias falsas”, que estavam circulando sobre o incêndio. Entre a tarde de segunda-feira (15), e a manhã de terça-feira (16), Jane Lytvynenko e Craig Silverman, repórteres do “Buzzfeed News”, destacavam no item “2”, que não havia nenhuma evidência de que muçulmanos teriam reagido de “maneira sorridente” ao incêndio, através do Facebook.
No entanto, na tarde de terça-feira (16), houve uma nova atualização. Foi removida a história de não haver nenhuma evidência, e substituíram pelo subtítulo: “Influenciadores de extrema-direita estão empurrando uma velha narrativa sobre as reações de ‘carinhas sorridentes’“. O antigo texto também foi inteiramente removido. Eis um trecho do novo texto:
“Durante o incêndio de Notre Dame, os emojis gargalhando estavam claramente em minoria, sendo impossível saber a razão pela qual as pessoas escolhem um emoji específico ou, ainda, a religião de pessoas que reagem a um vídeo no Facebook. Também é difícil verificar a autenticidade das contas. Conclusão: os emojis do Facebook em um vídeo não nos dizem nada sobre um grupo de pessoas.”
Enfim! Como justificativa, o “Buzzfeed News” divulgou uma captura de tela, em que nomes em árabe reagiam com emojis gargalhando num vídeo relacionado ao Massacre em Christchurch, na Nova Zelândia. Porém, o vídeo não trata da ação do massacre em si, mas de uma cerimônia de oração em homenagem as vítimas, cerca de uma semana depois. Além disso, a proporção desses usuários era muito menor do que aconteceu no vídeo do incêndio da Catedral de Notre-Dame.
Atualizações
Atualização #1 (17/04 – 11:40): O site “PolitiFact” disse ter entrado em contato com o Centro Nacional de Mídia Forense, da Universidade do Colorado, nos EUA. Por email, Catalin Grigoras, diretor do centro, teria dito que a foto creditada a Sputnik teria sido adulterada. Catalin teria dito, que as duas pessoas teriam sido inseridas na foto. Houve também a alegação de que a foto teria sido publicada no Twitter antes da divulgação por parte da Sputnik, porém não foi divulgado nenhum perfil que comprovasse tal alegação. O site também não disse ter entrado em contato com a agência Sputnik para esclarecer o assunto. Assim sendo, manteremos a conclusão da foto como “em princípio, verdadeira”, até que tenhamos maiores evidências contrárias.
Atualização #2 (19/04 – 10:15): Dmitry Borschevsky, Vice-Chefe de Comunicações e Relações Públicas e Chefe Global de Relações com a Mídia da Agência Internacional de Notícias Rossiya Segodnya, nos confirmou que a foto foi tirada pela Sputnik France. Além disso, ele disse oficialmente que a foto não foi adulterada. Ele também nos forneceu fotos, entre elas a que seria a original, e um vídeo para provar isso. Para completar, o EXIF da foto que seria a original é compatível com o que vemos na imagem e a análise do nível de erro, fornecido pelo site “FotoForensics”, não indica que os homens foram inseridos digitalmente.
Conclusão
As três fotos amplamente compartilhadas são verdadeiras (a primeira foto foi posteriormente e profundamente investigada aqui). No entanto, não há um conjunto probatório sólido indicando, que os indivíduos sejam muçulmanos. Da mesma forma, não temos como afirmar, categoricamente, que eles estavam expressando felicidade em comemoração ao incêndio da Catedral de Notre-Dame. Tudo é muito subjetivo e carece de evidências concretas, não apenas um mero achismo baseado em estereótipos.
Em relação a comemoração nas redes sociais, houve manifestações e reações de contentamento com o incêndio por parte de milhares de perfis, supostamente pertencentes a indivíduos árabes e muçulmanos. Não temos como atestar se todos os perfis são de pessoas reais. Porém, ainda que todos fossem muçulmanos, eles não representariam uma massa composta por cerca de 1,8 bilhões de pessoas adeptas ao Islamismo ao redor do mundo. Portanto, é necessário ter cautela para não generalizarmos tais comportamentos, independentemente da religião que estivermos falando.