Ondas em praia dos Estados Unidos congelaram devido ao frio intenso?
Será verdade que as ondas do mar, de uma praia dos Estados Unidos, congelaram devido ao frio intenso que vem fazendo sobre grande parte da América do Norte? Bem, é isso que alguns sites brasileiros voltados ao mundo do entretenimento vêm alegando, principalmente através de fotografias, desde 25 de janeiro de 2019.
Entretanto, será mesmo que essa informação procede? As fotografias realmente mostram ondas congeladas em pleno mar? As fotos realmente foram tiradas este ano? Descubra agora, aqui, no E-Farsas!
A Alegação por Parte de Alguns Sites Brasileiros Sobre as Tais “Ondas Congeladas” nos Estados Unidos
Em um artigo intitulado “Frio intenso congela as ondas do mar nos EUA, criando um espetáculo nunca antes visto”, publicado no dia 25 de janeiro de 2019, o site “Isto é Super Interessante” (diga-se de passagem, esse site não possui nenhum vínculo com a revista “Super Interessante”, da Editora Abril), disse que o um fotógrafo chamado Jonathan Nimerfroh, que é fascinado pelo mar e pelo surfe, havia registrado um momento incrível, onde as ondas de uma praia (não foi mencionada qual seria essa praia) estavam tão densas, que pareciam “raspadinhas”.
Em seguida foi mencionado, ipsis litteris: “A onda, na verdade, não congelou. O que aconteceu foi que as águas ficaram mais densas, deixando a água um pouco parecida com uma raspadinha“. Para terminar foi dito que a água do mar congelava somente se atingisse -20ºC.
Já o site “Mega Curioso” publicou um artigo intitulado “Ondas em praia dos Estados Unidos congelam devido ao frio intenso”, no dia 6 de fevereiro de 2019, falando novamente do fotógrafo Jonathan Nimerfroh. Nesse artigo, que já obteve quase 1.000 compartilhamentos, foi mencionado que: “O frio que atingiu a costa leste dos Estados Unidos foi tão intenso que as ondas das praias congelaram. O incrível fenômeno ocorreu em Nantucket, um condado norte-americano localizado em Massachusetts“. Em declaração para o site “Live Science”, Jonathan disse que, “as ondas além de lindíssimas, apesar de mais ‘pesadas’, ainda podiam ser surfadas.”
Segundo o “Mega Curioso” tudo teria acontecido no dia 2 de janeiro de 2019, na praia de Nobadeer, quando Jonathan, acompanhado por dois amigos, presenciaram as ondas slurpee, como são popularmente conhecidas (ou ondas de sorvete). Jonathan também disse, que a água salgada congelava somente a -2ºC e o mar de Nantucket estava a -11ºC naquele momento.
Para terminar, o artigo disse, ipsis litteris: “A queda de temperatura, que propiciou o congelamento do mar na praia de Nobadeer, foi causado por um evento meteorológico formado na costa atântica dos Estados Unidos nos últimos dias, que tem provocado nevascas e temperaturas congelantes.”
Verdade ou Mentira? Começando a Mostrar a Realidade Por Trás das Fotos e das Informações que Foram Divulgadas
Nenhuma das fotos divulgadas nos sites “Isto é Super Interessante”, “Mega Curioso” ou “Mistérios do Mundo” foram tiradas em 2019. Além disso, os títulos alegando que as ondas estavam congeladas soam ser “clickbait“, uma vez que as ondas não estavam congeladas, mas tão somente densas devido a uma grande quantidade de gelo na superfície do mar.
Para quem não conhece, “clickbait” é um termo em inglês muito comum para denominar sites, que tentam chamar a atenção com títulos exagerados de seus respectivos artigos com o objetivo de gerar tráfego online (cliques, e consequentemente dinheiro devido ao alto número de visualizações e compartilhamentos), porém geralmente oferece uma experiência, em termos de informação, muito precária ao leitor. É exatamente isso que vemos nos casos citados acima, devido a erros muito primários e, de certa forma, grotescos. Vamos explicar direitinho isso para você.
O artigo do site “Isso é Super Interessante” utilizou informações e fotos publicadas originalmente em 2015, pelo fotógrafo Jonathan Nimerfroh! É possível comprovar facilmente isso acessando uma notícia publicada no site da rede norte-americana CBS, em 26 de fevereiro de 2015, cujo título era: “Ondas quase congeladas capturadas pela câmera de um fotógrafo de Nantucket.” Ao longo do texto é possível ler que as ondas estavam semi-congeladas, porque havia muito gelo dentro delas.
Além disso, também podemos acessar o site da “Galeria Samuel Owen”, que é a atual responsável por comercializar as fotos das “ondas slurpee” (esse termo faz referência a uma marca de bebida gaseificada congelada vendida pela multinacional “7-Eleven”, e que lembra muito a nossa “raspadinha de gelo”) de Jonathan Nimerfroh, e novamente observar que as fotos publicadas pelo site “Isto é Super Interessante” foram tiradas em 2015. As fotos foram assim denominadas: ,
Jonathan Nimerfroh fez sucesso na mídia naquele ano, e se tornou alvo de artigos em jornais e revistas, que exaltaram suas fotos:
Em 2016 ( e ), Jonathan voltou a registrar esse “fenômeno” em Nantucket, que é uma ilha pertencente ao estado norte-americano de Massachusetts, porém ele não ganhou tanta notoriedade da mídia local ou internacional.
) e 2017 (Já em 2018, suas novas fotos (, , , voltaram a ter destaque internacional, e apareceram em sites como o “Live Science” e do jornal “O Globo”. Aliás, foram justamente essas fotos, que foram publicadas recentemente pelo site “Mega Curioso”, que cometeu um erro grotesco de sequer olhar a data da publicação do “Live Science”, que era 4 de janeiro de 2018.
As Prováveis Origens do Problema: O Site “Bored Panda” e Constante Republicação das Fotos por Parte de Jonathan Nimerfroh
Além da falta de atenção dos sites, que publicaram as fotos como se tivessem sido tiradas em 2019, temos dois outros problemas: o site “Bored Panda” e constante republicação das fotos por parte de Jonathan Nimerfroh, em sua conta na Instagram.
O “Bored Panda”, que por sua vez é um famoso site lituano, que publica artigos sobre “tópicos leves e inofensivos”, não costuma datar suas publicações. O motivo? Bem, dessa forma um determinado artigo pode ser republicado nas redes sociais infinitas vezes como se fosse uma novidade, visto que as pessoas, geralmente, têm memória curta. Contudo, o artigo do “Bored Panda”, que foi utilizado como fonte pelos sites “Isto é Super Interessante” e “Mega Curioso”, foi publicado em 2015. No próprio artigo há links para outras publicações daquele mesmo ano.
No entanto, Jonathan Nimerfroh não é totalmente inocente em toda essa história, porque ele costuma republicar constantemente suas fotos, tiradas em anos anteriores, em sua conta no Instagram, sem dizer a data em que as ondas foram fotografadas. Vamos citar alguns exemplos:
- A foto chamada “Lost at Sea” foi publicada em fevereiro de 2016, e republicada em fevereiro de 2019;
- A foto chamada “Morning Glass Off” foi publicada em fevereiro de 2015, e republicada em agosto de 2017;
- A foto chamada “Fisherman’s A-Frame” foi publicada em fevereiro de 2015, e republicada em dezembro de 2015 e fevereiro de 2019;
- A foto chamada “Ice Wedge” foi publicada em fevereiro de 2016, e republicada em novembro de 2016, junho de 2017, agosto de 2017, dezembro de 2017 e fevereiro de 2019.
Recentemente, ou seja, no início de fevereiro de 2019, Jonathan republicou uma série de fotos antigas em seu Instagram, dando a entender que teriam sido tiradas neste ano, porém isso é mentira. Sabendo da recente onda de frio, que vem assolando principalmente os estados norte-americanos banhados pelos Grandes Lagos, Jonathan pode ter se aproveitado da situação para se promover.
De qualquer forma, até o momento do fechamento desta postagem, não houve a publicação de nenhuma foto nova por parte do fotógrafo.
A Explicação do Fenômeno Registrado por Jonathan Nimerfroh
Entre tantas propriedades anômalas da água existe uma relacionada à sua densidade. A água doce possui densidade máxima a 4ºC, ou seja, se a água doce for resfriada a partir da temperatura ambiente, sua densidade aumenta quando a temperatura baixa, atingindo um máximo de densidade a 4ºC. Abaixo de 4ºC a densidade diminui e, quando a água congela, há uma brusca diminuição de densidade. A água do mar, por ser salgada, tem sua densidade máxima próxima ao ponto de congelamento, que é cerca de -2ºC. Já a água doce congela a 0ºC.
De qualquer forma, tanto um lago de água doce quanto um mar de água salgada começam a congelar a partir de suas superfícies, quando a temperatura do ambiente diminiu. A água é péssima condutora de calor, mas nela pode haver convecção. A água fria da superfície de um lago ou de um mar, por ser mais densa do que a água profunda, afunda enquanto a água na parte inferior do lago, que está a uma temperatura superior à da superfície, e menos densa, sobe. Assim sendo, acontecem as correntes de convecção, que resfriarão o lago ou o mar a partir de cima.
Entretanto essas correntes cessam, no caso da água doce, em 4ºC, uma vez que nessa temperatura a água encontra sua densidade máxima. Um resfriamento da superfície abaixo de 4ºC não determina mais que a água fria afunde. Se o processo de resfriamento da superfície continuar, finalmente irá se formar gelo por cima. Assim sendo, a parte debaixo do gelo será lentamente resfriada apenas por condução. Curiosamente, essa camada de gelo funciona como um isolante térmico, não permitindo que um lago ou um mar congele tão facilmente por inteiro. Geralmente, quando você escuta na mídia que um lago congelou devido ao frio intenso, muito provavelmente apenas sua superfície está congelada, não o lago inteiro. Entenderam?
Especificamente, no caso de mares e oceanos de água salgadas é preciso ter em mente 4 coisas:
- A água congelada é mais leve do que a água em estado líquido (por isso que o gelo boia na água);
- Sal e gelo não combinam bem (em muitos países o sal é usado para derreter a neve nas estradas);
- Água doce congela a 0ºC, mas a água salgada precisa de uma temperatura mais baixa para congelar;
- Em regiões polares, a temperatura do ar pode ficar abaixo de -20ºC, mas a temperatura da água raramente cai para menos de -2ºC.
Por isso, as baixas temperaturas do ar, principalmente em regiões polares, congelariam a água da superfície do mar facilmente se elas não tivessem sal. Então, o que acontece é quase uma disputa entre o ar extremamente frio, que tenta congelar a água da superfície, e o sal que tenta impedir que esse congelamento aconteça. E essa é uma ótima e interessante briga.
O sal, por ser mais pesado, começa a ir para o fundo do mar deixando a água da superfície livre para congelar e a água do fundo do mar extremamente salgada. Assista ao vídeo abaixo, que mostra um mergulhador vendo esse fluxo descendo para o fundo do mar:
Ao cair para o fundo do mar, esse fluxo congela a água que entra em contato com ele. Com isso, “canos de gelo” começam a surgir dentro do mar. (dá pra ver isso no final do vídeo do mergulhador). Porém, o mais incrível é que, quando esse “cano” encosta no fundo do mar, um rastro começa a se formar e congelar absolutamente toda forma de vida que aparece no caminho. Esse fenômeno só foi registrado por câmeras uma vez em toda a história e foi nesta década!
O vídeo abaixo mostra esse registro feito pela BBC, e ajuda a visualizar esse fenômeno impressionante conhecido como “dedo da morte”:
Segundo o NOAA, a água do mar congela a -2ºC, visto que em média, a salinidade dos oceanos aqui na Terra é de 3,5%. Na prática, isso quer dizer que, a cada 1 quilo (sim, quilo) de água no mar temos, em média cerca de 35 gramas de sal. Porém, essa temperatura de congelamento pode variar ligeiramente dependendo da concentração de sal na água. Para vocês terem uma ideia, a água do mar mais fria já registrada (em estado líquido) foi em 2010, em uma espécie de riacho sob uma geleira na Antártica, que estava a uma temperatura de -2,6°C.
Portanto, quando Jonathan disse no passado, que a água do mar estava a -11ºC, sua informação estava incorreta e, por mais incrível que pareça, isso simplesmente passou batido na mídia, inclusive em sites destinados a divulgação de notícias de cunho científico. Se a água estivesse mesmo a essa temperatura, a superfície inteira do mar estaria realmente congelada, e não apenas densa com cristais de gelo. Além disso, para congelar a superfície de um mar inteiro, seria necessário que uma onda de frio durasse muito tempo e o ar estivesse a uma temperatura constante de dezenas de graus abaixo de zero.
Dependendo das condições hidrodinâmicas locais a formação do gelo no inverno passa por diferentes etapas, até a formação de uma camada sólida contínua. De forma geral, a formação se inicia com pequenos cristais de 3 a 4 mm de diâmetro que são chamados, em inglês, de “frazil ice”. Esses cristais se acumulam e, conforme a temperatura desce, eles se ligam e se consolidam em estruturas que se parecem com grandes panquecas recebendo, em inglês, o nome de “pancake ice”. As panquecas por sua vez também se consolidam e formam os chamados “ice sheets” ou “lençóis de gelo”.
No caso do mar em Nantucket, em 2018, é possível notar que chegou a formar esses “cristais de gelo”, e as tais “panquecas de gelo”, mas a superfície do mar não congelou totalmente. Confira o vídeo abaixo para ter uma noção mais exata do que aconteceu (na descrição do vídeo é informado que a temperatura do mar estava a 36º F, ou seja, cerca de 2ºC):
Conclusão
Nenhuma das fotos divulgadas nos sites “Isto é Super Interessante”, “Mega Curioso” ou “Mistérios do Mundo” foram tiradas em 2019. Além disso, os títulos alegando que as ondas estavam congeladas soam ser “clickbait“, uma vez que as ondas não estavam congeladas, mas tão somente densas devido a uma grande quantidade de gelo na superfície do mar.