Por que o E-farsas não fornece listas com sites que propagam fake news?
Muitos dos nossos seguidores vivem nos perguntando o motivo pela qual não fazemos listas com sites que propagam fake news. E antes de entrarmos nesse assunto, é bom deixar claro que não somente não fornecemos, assim como não endossamos a criação ou divulgação de quaisquer listas que tenham esse teor.
Em primeiro lugar, classificar as chamadas “fake news” é complicado. Como exemplo podemos citar um excelente texto escrito pela Claire Wardle, em 2017, intitulado “Fake news. It’s complicated“. A Claire Wardle é co-fundadora e diretora da “First Draft News”, uma organização sem fins lucrativos focada na pesquisa e em mecanismos práticos para resolver a questão sobre a desinformação. Se vocês não conhecem esse texto, por favor, pedimos encarecidamente que leiam. Usem o Google Translator, mas leiam.
No texto ela diz, acertadamente, que a questão é muito maior do que meras notícias, mas sobre todo o ecossistema da informação. Uma sátira pode ser criada, ainda que de forma implícita e disfarçada de humor, para ser desinformativa. Uma imagem descontextualizada pode ajudar a gerar engajamento e, consequentemente, vantagem financeira para uma determinada empresa. Não se enganem ao acreditar que as “fake news” são apenas textos ou vídeos publicados em sites ou canais do lado que vocês não gostam. A discussão é muito mais ampla que isso. É uma discussão que pouquíssimas pessoas, exceto aquelas que, de fato, estão na linha de frente, entre vocês e a mentira, estão dispostos a ter.
Assista a um resumão desse artigo no nosso canal no YouTube clicando no player abaixo:
Quantas Vezes é Preciso Mentir?
E nisso chegamos a um outro ponto: quantas vezes alguém precisa mentir para ser taxado de mentiroso? Basta uma mentira? Duas? Três? Quem chegar a três pode pedir música? Dez a cada dez dias? Qual a gravidade? Duas “leves” e uma “pesada”? Como classificamos com precisão o que é “leve” ou “pesado”? E se um veículo de comunicação alegar que cometeu um “equívoco”?
E se esse “equívoco” for constante? Como podemos julgar o dolo? E se uma pessoa alegar que não sabia, que não tinha o conhecimento, tempo ou ferramentas necessárias para avaliar a veracidade? E se um veículo resolver apoiar sua pesquisa somente numa única fonte e não ter a menor vontade de investigar por contra própria? Equívoco ou houve intenção de propagar desinformação? Quem julga isso?
No E-farsas já flagramos, inúmeras vezes, páginas no Facebook disseminando informações de cunho científico totalmente distorcidas ou falsas. Algumas simplesmente desistiram de propagar desinformação e atualmente se voltaram apenas na publicação de “memes”. Outras continuam, na certeza da impunidade, a propagar imagens falsas para gerar engajamento e, em alguns casos, obter vantagem econômica.
A premissa básica de um verificador de fatos é checar a informação, não um site. Há, evidentemente, casos em que sites são criados de forma bem precária e possuem um claro intuito de servir como “escada” para a propagação de informações falsas. Contudo, por incrível que pareça, eles não são a regra, são ilhas em meio a um oceano de desinformação.
Não Fizemos Parte da Elaboração ou Endosso a Quaisquer Listas
Um recente relatório produzido pela Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) das Fake News gerou uma lista de sites que apresentaram “conteúdo inadequado” em apenas 38 dias (entre 6 de junho e 13 de julho de 2019). Os dados foram obtidos via Lei de Acesso à Informação pela CPI e revelados pelo jornal O Globo. O Estadão também teve acesso ao relatório.
Segundo o que apuramos, os veículos qualificados como “conteúdo inadequado” receberam tal título devido a “existência de três ou mais matérias classificadas como ‘desinformativas’ pelos principais checadores de notícias do país“.
Não fizemos parte da elaboração e nem endossamos essa lista. Repudiamos a metodologia adotada relacionada a periodicidade e mensuração da desinformação gerada para classificar quaisquer sites ou canais. Não houve nenhuma consulta ao E-farsas que pudesse corroborar com tais alegações. Por mais que tenhamos muita raiva de ver sempre o mesmo modus operandi é delirante punir com base em listas. Também não compactuamos com quaisquer justiceiros virtuais, ainda mais apócrifos, e repudiamos veementemente que usem nossa credibilidade e nossos quase 20 anos de existência para tal finalidade.
Checagem em Xeque: Quando uma Fonte Não Faz Questão de Ser Checada
Em 2014, checamos um recorte de jornal, que havia sido propagado da seguinte forma: “Carro capota com 4 pessoas e uma mulher“. A notícia, que parecia ter sido publicada em algum jornal da cidade de Teófilo Otoni/MG, dava a entender que a mulher não era uma pessoa, e isso gerou inúmeras manifestações nas redes sociais.
No site de um jornal local, que parecia ter sido a fonte utilizada no recorte, a manchete, no entanto, era outra: “Carro capota com 4 pessoas e uma mulher morre“. Inicialmente, acreditamos que se tratava de uma montagem.
Erramos – “Carro capota com 4 pessoas e uma mulher!” é real!
Entretanto, recebemos inúmeros pedidos para verificar novamente esse caso e resolvemos entrar em contato com a redação do referido jornal que, na época, simplesmente nos ignorou. O E-farsas enviou três e-mails e também tentou contato pela página “Fale Conosco” do site do jornal, mas não tivemos nenhuma resposta. Posteriormente, descobrimos que a versão impressa do jornal realmente havia sido publicado a manchete problemática: “Carro capota com 4 pessoas e uma mulher“.
Desde então, é claro, passamos a ser mais cautelosos, muito embora a cautela não nos garanta imunidade. Não estamos acima da Lei, assim como ninguém deve estar.
Quando o Grupo de uma Agência de Checagem se Torna Vítima da Própria Checagem
Por mais que tenhamos quase 20 anos de existência e milhares de informações verificadas até hoje não tivemos reconhecimento, por exemplo, do Facebook ou do Google. E isso acaba gerando situações, no mínimo, constrangedoras.
Agora, considerando desde o momento do deslizamento de terra visto na foto que estava circulando, passando uma limpeza prévia do local, levantamento geológico, criação e aprovação de projeto, liberação de recursos e as obras de construção da estrada, o tempo decorrido tinha sido de quase quatro meses para que o tráfego fosse finalmente liberado.
Uma estrada temporária foi construída em apenas 24 horas no Japão?
Assim sendo, publicamos o artigo em nosso grupo, no Facebook, que em pouco tempo recebeu uma notificação por divulgação de informação falsa! Contudo, o nosso artigo era justamente desmentindo, não espalhando mentiras! Para piorar a situação e torná-la ainda mais constrangedora, o Facebook alegou que a informação havia sido checada pela MAFINDO, uma agência de checagem da Indonésia que utilizou nosso artigo no E-Farsas como base para desmentir o ocorrido!
Olha aqui @facebook que coisa chata: Nossa checagem foi classificada como "falsa" por uma checagem estrangeira que usou nosso artigo como base! pic.twitter.com/SuenBBjhgk
— Gilmar Lopes (@efarsas) October 15, 2019
E isso foi apenas um exemplo, visto que o mesmo acontece com publicações de usuários que nos pedem para verificar algo. Verificamos, publicamos um artigo, trancamos a discussão e ainda assim de vez em quando ocorre esse tipo de situação. Se o critério fosse “pedir música no Fantástico” nosso grupo seria um disseminador de fake news! Surreal!
Agora, se fôssemos reconhecidos, isso nos garantiria alguma imunidade? Não! A responsabilidade iria, inclusive, aumentar absurdamente.
Quando Agências de Checagem Erram ou Cometem Equívocos
Assim como não somos imunes a erros, outras agências, não importando o tamanho que possuam, também não são.
Em abril de 2019, a renomada agência norte-americana PolitiFact errou ao inicialmente classificar como “manipulada digitalmente” uma foto de “muçulmanos sorrindo em frente ao incêndio da Catedral de Notre-Dame“. A alegação inicial da agência era de que a foto havia sido disseminada pela Sputnik News, “conhecida fonte de propagação de desinformação”. Essa alegação foi utilizada como um dos argumentos para dizer que a cena nunca existiu.
Dobrando a Aposta
Para piorar, eles dobraram a aposta ao consultar o diretor de um centro forense, que por sua alegou que havia indícios de que a foto havia sido forjada.
Na época, entramos em contato com Dmitry Borschevsky, então Vice-Chefe de Comunicações e Relações Públicas e Chefe Global de Relações com a Mídia da Agência Internacional de Notícias Rossiya Segodnya. Em seu email, Dmitry disse que a foto havia sido tirada pela Sputnik France e que não havia sido adulterada. Ele, inclusive, nos forneceu a foto original, um vídeo e outras fotos provando que estava falando a verdade. Analisamos a foto e atestamos que ela era verdadeira, muito embora se tratasse da captura de um momento isolado. Não sabíamos se os homens eram, de fato, muçulmanos ou se estavam realmente rindo do incêndio.
Triplicando a Aposta
Batemos de frente com a PolitiFact e com o tal centro forense, mas a posição deles não mudou. Pelo contrário, foi triplicada. Qualquer pessoa que pesquisasse pela foto no Facebook ou no Google recebia um alerta de que a foto havia sido manipulada digitalmente!
Deixando a Mesa
A postura da PolitiFact mudou apenas quando o assunto chamou a atenção de outras agências. Outros sites checaram e chegaram a mesma conclusão que a nossa! Não houve retratação, no entanto, apenas uma série de modificações no artigo de análise e a retirada do alerta ao realizar consultas no Facebook e no Google.
De fato, o momento registrado nunca implicou necessariamente, que as pessoas estivessem rindo do incêndio, mas e se estivessem? Como caracterizamos o dolo? Só o relato dos envolvidos é suficiente? Quais elementos precisamos ter para classificar isso? Isso é motivo de linchamento virtual? Isso dá o direito de uma agência classificar a foto como falsa/manipulada digitalmente, sendo que ela é autêntica? Como explicar ao leitor, caracterizar e eventualmente punir tais erros ou equívocos? Foi equívoco? Foi erro? Excesso de zelo? A PolitiFact teria que ser punida por isso?
E se o Mesmo Ocorresse com uma Agência de Checagem no Brasil?
Apenas reflitam.
Hoje São Eles, Amanhã Será a Nossa Vez?
Dar ao Estado ou a justiceiros virtuais o poder de punir com base em listas não é o caminho para minimizar o impacto gerado pelas fake news. Quem garante que o compromisso será sempre com a verdade? Fazemos isso há 20 anos e temos plena consciência de que governos são temporários. A alternância de poder é um conceito intimamente relacionado a democracia.
Hoje os chamados “inimigos da boa informação” são uns, mas amanhã podem ser outros. Hoje são eles, amanhã será a nossa vez? Teremos que verificar apenas o que algumas poucas pessoas querem? Teremos que dar as respostas que algumas poucas pessoas desejam? Será obrigatório o uso de conjunções adversativas em todas as conclusões de artigos?
E quando a verificação não agradar a quem estiver no poder? E quando a checagem estiver correta, mas um evento for dissimulado apenas para comprometer a credibilidade de uma agência? Haverá Lei para proteger aqueles que separam eles de vocês ou também seremos alvos? Aliás, a mentira se tornou um alvo? Ela é específica? Ela tem lado?
A verdade é que a mentira não tem cor, gênero, religião ou classe social. Ela não se importa se você gosta ou não dela. Ela não liga a mínima para o seu grau de escolaridade. Não tem qualquer respeito a sua idade, sua opinião ou a sua vida. Ela atravessa o tempo, dá voltas pelo mundo e nunca se cansa. E é por isso que estamos aqui, incansavelmente correndo atrás dela.
Estamos aqui por vocês, não por eles.