Será verdade que insetos e répteis vivos ou fossilizados foram descobertos em Marte?
O planeta Marte sempre inspirou o imaginário de muitos astrônomos e entusiastas das mais variadas áreas ao redor do mundo, mas será que foram encontradas evidências de que insetos e répteis, semelhantes aos da Terra, vivem ou viveram no chamado “Planeta Vermelho”?
Recentemente, inúmeros veículos de imprensa resolveram propagar as declarações do Dr. William Romoser, um entomologista da Universidade de Ohio, nos Estados Unidos. Ele alegou ter passado anos estudando fotos divulgadas publicamente, tiradas pelos rovers (veículos de exploração espacial projetados para moverem-se na superfície de um planeta ou de outro corpo celeste) que já foram enviados para Marte. Segundo ele, muitas fotos mostram estruturas, que se parecem muito com insetos fossilizados, assim como criaturas vivas! O Dr. William Romoser teria identificado até mesmo um cobra em solo marciano!
Aqui no Brasil, a divulgação seguiu basicamente a tendência internacional: manchetes questionáveis e conteúdo extremamente raso. Como exemplo, podemos citar os textos publicados pelo sites “Último Segundo” (“Cientista diz ter encontrado evidências de alienígenas em Marte“), “Aventuras na História” (“Cientista estadunidense afirma ter encontrado vida em Marte. Confira imagens!“) e “Olhar Digital” (“Estudo de fotos mostra vida em Marte“).
O destaque negativo ficou por conta do site “Aventuras na História” ao alegar que as imagens mostravam até mesmo um “homem-lagarto”, sendo que isso não foi citado em nenhum momento pelo Dr. William Romoser.
Enfim! Será que insetos vivos ou fossilizados foram realmente encontrados em Marte? Qual a realidade por trás de toda essa história? Descubra agora, aqui, no E-Farsas!
Verdadeiro ou Falso?
Falso! Na verdade, tudo indica que todos os supostos insetos ou répteis — vivos ou fossilizados — são apenas meras rochas. No entanto, assim como sempre fazemos, iremos mostrar os detalhes mais pertinentes de toda essa história. Dessa forma, vocês poderão ver claramente como esse assunto foi superestimado pela mídia de um modo geral.
Como Tudo Isso Começou?
No dia 19 de novembro de 2019, o Dr. William Romoser, apresentou um pôster (um mero cartaz) intitulado “Does Insect/Arthropod Biodiversity Extend Beyond Earth?” (“A Biodiversidade de Insetos/Artrópodes se Estende Além da Terra?”, em português) no Encontro Anual de Sociedade Entomológica da América, em St. Louis, Missouri, nos Estados Unidos.
Eis o texto de apresentação do pôster escrito pelo Dr. William Romoser (devidamente traduzido):
“Há ampla evidência para responder afirmativamente à pergunta colocada no título. Durante vários anos, estive envolvido no estudo das fotografias da NASA-JPL transmitidas à Terra a partir de veículos de superfície enviados para explorar Marte, em particular o rover Curiosity. Essas fotos estão disponíveis publicamente na internet.
Neste pôster, apresento e discuto vários exemplos de formas semelhantes a insetos/artrópodes (fósseis e vivos) encontradas em fotos do rover de Marte. Os exemplos incluem formas semelhantes a insetos que exibem diversidade aparente, características anatômicas de insetos/artrópodes claramente reconhecíveis e voo. Também são apresentadas evidências de uma forma fóssil de réptil (sinuosa) e formas semelhantes a répteis que se alimentam de formas semelhantes a insetos. Cada exemplo está documentado. Essas descobertas fornecem uma base convincente para estudos adicionais e levantam muitas questões importantes.“
Quem é o Dr. William Romoser?
Segundo um comunicado de imprensa publicado no site da Universidade de Ohio, também no dia 19 de novembro de 2019, o Dr. William Romoser é especializado em arbovirologia e entomologia geral/médica. Ele foi professor de entomologia na Universidade de Ohio por 45 anos (atualmente possui o título de professor emérito) e co-fundou o Instituto de Doenças Tropicais. Ele também teria passado quase 20 anos como pesquisador visitante de doenças transmitidas por vetores no Instituto de Pesquisa Médica de Doenças Infecciosas do Exército dos EUA.
Entre 1973 e 1998, Romoser foi autor e co-autor de quatro edições do livro “The Science of Entomology”.
Entretanto, o Dr. William Romoser não é afiliado da NASA, do JPL (Laboratório de Propulsão a Jato da NASA), não participou de nenhuma missão envolvendo quaisquer rovers, e nem possui credenciais em Astrobiologia. Portanto, ele não dispõe informações técnicas sobre as imagens registradas por tais equipamentos, e nem mesmo tem conhecimento técnico sobre como eles foram projetados para operar.
As Declarações do Dr. William Romoser no Comunicado de Imprensa da Universidade de Ohio
No comunicado de imprensa, posteriormente apagado pela Univerdade de Ohio (daqui a pouco explicaremos o porquê), foram feitas alegações um tanto quanto peculiares.
“Houve e ainda existe vida em Marte. Existe uma aparente diversidade na fauna marciana, que se assemelha a insetos, que exibe muitas características semelhantes aos insetos terráqueos (interpretados como grupos avançados), tais como: a presença de asas, flexão das asas, planagem/voo ágil e diversos elementos estruturais de pernas“, disse o Dr. William Romoser.
No texto é mencionado a existência de diversas fotos, que claramente mostrariam formas semelhantes a insetos e répteis, e que as imagens foram cuidadosamente e individualmente analisadas. Aliás, segundo o texto, em algumas fotos as tais criaturas lembravam vagamente mamangabas ou abelhas capinteiras da Terra.
Para finalizar o Dr. William Romoser disse:
“A evidência da vida em Marte apresentada aqui fornece uma base sólida para muitas questões biológicas importantes, além de questões sociais e políticas. Também representa uma sólida justificativa para estudos adicionais“
Um Exemplo de Desserviço a Ciência e a Astronomia
Uma pessoa leiga talvez ficasse admirada com o pôster apresentado pelo Dr. William Romoser. Contudo, seu trabalho não pode, de fato, ser chamado de estudo. Para vocês terem uma noção, isso sequer foi publicado num periódico científico revisado por pares. O motivo? Jamais seria aprovado num periódico que prezasse por sua própria reputação.
Aquilo que a mídia chamou de estudo é tão somente um pôster, onde ele simplesmente pegou algumas fotografias tiradas por rovers que estão em Marte. Em seguida ele ampliou e desfocou algumas fotos, aparentemente de maneira proposital, e terminou desenhando algumas linhas ao redor daquilo que ele, e tão somente ele, acredita ser insetos ou répteis (vivos ou fossilizados). Fora isso, não há mais nada.
Sem Respostas para Simples Perguntas
O “trabalho” do Dr. William Romoser, por exemplo, não respondeu algumas simples perguntas:
- Como os tais insetos voam em Marte? A atmosfera marciana é muito rarefeita e a pressão atmosférica é extremamente baixa se comparada a da Terra (inferior a 1%). A água evapora por volta de 10ºC, sendo que a temperatura média do planeta é de -63ºC;
- Como tais insetos ou répteis respiram em Marte? Cerca de 95% da atmosfera de Marte é composta por dióxido de carbono (CO2), sendo que o oxigênio representa apenas 0,13%;
- Como tais insetos ou répteis se reproduzem? Deveríamos ver colônias de tais animais circulando em Marte, não é mesmo? Eles deveriam estar circulando nesse momento em plena superfície, atacando os rovers, mas não há nenhum indício de qualquer movimentação de animais no “Planeta Vermelho”. Não há vida complexa se deslocando de forma misteriosa.
- Como tais insetos ou répteis se alimentam? Se existem poucas espécimes, como elas se alimentam? Além disso, essas espécimes não possuem sistema excretor? Onde estão os resíduos metabolizados dessas espécimes?
- Como todas essas formas de vida sobrevivem às recorrentes tempestades globais de poeira em Marte?
- Ao contrário da Terra, o planeta Marte não tem campo magnético para protegê-lo da radiação. Portanto, como as abelhas, répteis e artrópodes sobrevivem?
Um “Trabalho” Semelhante ao que Hoaxers Conhecidos Costumam Fazer
Ironicamente, o Dr. William Romoser fez exatamente o que hoaxers conhecidos costumam fazer. Não explicou absolutamente nada e apenas desenhou por cima de fotos tiradas por rovers.
A Ciência é um Processo Rigoroso
De acordo com Evan Gough, do site “Universe Today“, a ciência é um processo rigoroso, e a emoção de fazer parte de uma descoberta extremamente importante é um evento gratificante que, às vezes, muda a vida dos cientistas. Contudo, os cientistas também são seres humanos. Logo, é possível que uma eventual “empolgação” possa sobrecarregar todo um treinamento científico. Como cientista, o Dr. William Romoser exibiu, no mínimo, uma falta de cautela cética.
Numa determinada parte do comunicado de imprensa, o Dr. Romoser disse:
“Eu observei instâncias sugestivas de água parada ou pequenos cursos d’água com meandros evidentes e com o desfoque esperado de pequenas rochas submersas, rochas emergentes maiores na interface atmosfera/água, uma área úmida, e uma área mais seca além da área úmida“
Em termos científicos, é insuficiente dizer: “Eu observei…”. São necessárias evidências e que elas sejam corroboradas. A temperatura da superfície de Marte é comparável a parte mais central da Artártida. Embora seja verdade que o rover “Curiosity” detectou água em Marte, era água salgada e intermitente em circunstâncias específicas. Não está claro como essa água sustentaria atualmente a vida de insetos ou répteis. Enfim, conseguem entender as inúmeras implicações sobre a existência atual de insetos ou répteis em Marte?
Para completar, nossa civilização realiza missões para Marte desde a década de 1960, e nunca houve um avistamento confirmado (ou qualquer avistamento proposto por um cientista de verdade) de qualquer tipo de inseto ou réptil no “Planeta Vermelho”.
O Que São as “Criaturas” Apresentadas pelo Dr. William Romoser? Por que na Cabeça de Algumas Pessoas Tais Rochas se Parecem Com Animais?
Conforme dissemos anteriormente, tudo indica que as tais “criaturas” do Dr. William Romoser são apenas rochas! E por qual motivo meras rochas foram taxadas como se fossem animais? Bem, isso acontece devido a algo chamado pareidolia, que é a tendência de um observador ver padrões distintos, que na verdade não existem, assim como nuvens com o formato de animais ou pessoas.
A pareidolia é parte de nossa herança evolutiva e nos ajudou a sobreviver e construir uma civilização, mas, de vez em quando ela também um alto poder de nos enganar.
A Crença Particular do Dr. William Romoser
No caso do Dr. William Romoser existe algo ainda mais grave. Uma crença particular e anterior a essa apresentação sobre a existência de vida extraterrestre inteligente em Marte. Isso porque, nos anos de 2017 e 2018, ele publicou dois relatórios descrevendo “fenômenos aéreos não identificados” em Marte.
Novamente, ele utilizou fotografias de caráter público da NASA (principalmente do rover “Curiosity”) para alegar ter encontrado “OVNIs”, nos mais variados formatos, nos céus do planeta vermelho. Num dos relatórios ele disse:
“Uma estrutura artificial, aérea ou não, implica a presença ou visitação passada ou atual de vida inteligente“
Portanto, o Dr. William Romoser acredita que naves extraterrestres sobrevoam regularmente Marte, ainda que não tenha fornecido nenhuma prova substancial nesse sentido.
A Opinião de Especialistas Consultados pelo Site “Space.com”
A seguir vamos apresentar a opiniões de especialistas consultados pelo site “Space.com”.
David Maddison, Professor do Departamento de Biologia Integrativa da Universidade do Oregon, nos Estados Unidos
De acordo com David Maddison, professor do departamento de Biologia Integrativa da Universidade do Oregon, nos Estados Unidos, a “prova” fornecida pelo Dr. William Romoser provavelmente se trata apenas de “pareidolia”, assim como mencionamos anteriormente.
“Pessoalmente, tenho pareidolia em relação a insetos, besouros em particular. Trabalho com besouros há décadas; coletei milhares de besouros ao redor do mundo. Ao longo dos anos, construí em meu cérebro um sistema de reconhecimento de padrões para selecionar os besouros. No entanto, há uma taxa de falsos-positivos. Acabo vendo besouros onde não existem…
…Não acho que haja insetos em Marte. As fotografias apresentadas no comunicado de imprensa são pouco convincentes, visto que estão dentro do intervalo esperado de zilhões de objetos, que não são insetos, fotografados em baixa resolução. É muito mais parcimonioso presumir que tais estruturas são simplesmente rochas“, disse David Maddison.
Parafraseando Carl Seagan, David disse que “alegações extraordinárias exigem evidências extraordinárias“, mas que as fotos estavam longe de ser algo extraordinário.
Nina Lanza, Cientista Planetária do Laboratório Nacional de Los Alamos, nos Estados Unidos
“Acho realmente fácil encontrar padrões nas imagens, especialmente quando elas estão fora de contexto. São pequenos pedaços de imagens bem maiores, e não há barras de escala nelas. Você pode imaginar muitos formatos diferentes. Não é uma boa maneira de fazer esse tipo de avaliação“, disse Nina Lanza.
Vale lembrar nesse ponto, que os pesquisadores continuam estudando extensivamente a paisagem, o solo, a história e a atmosfera de Marte. E, enquanto os cientistas buscam ativamente por sinais de vida, compilando dados que possam um dia servir como evidência de vida passada ou presente em Marte (inclusive em outros mundos), não existe prova concreta de nenhuma forma de vida em Marte (ou em qualquer outro lugar fora da Terra).
“É assim que as coisas são. Ainda não conseguimos fazer essa afirmação, mas estamos procurando. Estamos empolgados, queremos afirmar isso também! Vamos contar assim que encontrarmos vida“, completou Nina Lanza.
A NASA Negou a Presença de Insetos ou Répteis em Marte
Em resposta ao site “Space.com”, a NASA deu a seguinte declaração:
“A opinião geral da grande maioria da comunidade científica é que as condições atuais na superfície de Marte não são adequadas para água líquida ou vida complexa. Como parte dos objetivos no campo da astrobiologia, um dos principais objetivos da NASA é a busca pela vida no universo, sendo que o rover ‘Mars 2020’, que será lançado no próximo verão, é nosso próximo estágio na exploração do potencial de vidas passadas no Planeta Vermelho.
Embora ainda não tenhamos encontrado sinais de vida extraterrestre, a NASA está explorando o Sistema Solar e além para nos ajudar a responder perguntas fundamentais, incluindo se estamos sozinhos no universo. Desde estudar a água em Marte, examinar mundos oceânicos promissores, tais como Encélado, Europa e Titã, até procurar bioassinaturas nas atmosferas de planetas fora de nosso Sistema Solar, as missões científicas da NASA estão trabalhando de forma conjunta com o objetivo de encontrar sinais inconfundíveis de vida além da Terra.“
Confiram também o que a NASA declarou ao site de tecnologia “CNET”:
“Não temos dados científicos que deem suporte a essa afirmação. Não há oxigênio suficiente para sustentar o metabolismo dos metazoários em Marte. Na Terra, os animais, especialmente os mais complexos, precisam de muito oxigênio. Existem apenas vestígios de oxigênio na atmosfera de Marte.“
O Prejuízo que Alegações Duvidosas Podem Causar
Para cientistas como Nina Lanza e David Maddison é óbvio que o material apresentado pelo Dr. William Romoser não prova absolutamente nada. Contudo, para muitos daqueles que não têm a menor paciência de ler uma matéria completa e apenas leem os títulos dos textos que são publicados, o prejuízo é muito grande.
“Quando temos esse tipo de manchete sensacionalista, é realmente difícil para o público saber se isso é verdade. Parece legítimo, é da Universidade de Ohio, são instituições reais e tudo mais… Quando encontrarmos algo em Marte e além, se encontramos, terá menos impacto… As pessoas continuam ouvindo ‘já descobrimos vida em Marte’. E isso tira a emoção das nossas verdadeiras descobertas“, finalizou Nina Lanza.
Diante da repercussão negativa e da própria NASA ao desmentir as alegações do Dr. William Romoser, a Universidade de Ohio simplesmente retirou o comunicado de imprensa de seu site. De fato, foi um episódio bem vexatório para a instituição de ensino.
Alguns Vídeos Para Entender Melhor Esse Caso
Caso alguém queira se aprofundar nesse caso, recomendamos o vídeo de autoria do geofísico Sérgio Sacani, do canal “Space Today”, no YouTube:
Também recomendamos o vídeo do astrônomo Felipe Hime, do canal “Café e Ciência”, também no YouTube:
Ambos os canais fazem parte do “Science Vlogs Brasil”, um projeto de divulgação científica voltado aos espectadores de vlogs na internet, tendo como plataforma principal o site YouTube! O E-farsas também faz parte desse projeto!
Conclusão
Falso! Não foram encontrados insetos e nem mesmo répteis em Marte! Na verdade, tudo indica que as formas demarcadas por Dr. William Romoser não passam de meras rochas! O material apresentado pelo entomólogo norte-americano está muito longe de servir como prova que existe ou que existiu qualquer tipo de vida complexa em Marte. Vale lembrar nesse ponto, que a esperança atual dos cientistas é encontrar vida em nível microbiano em Marte. Não lagartos e abelhas.
Infelizmente, no entanto, de modo geral a mídia divulgou o caso de maneira alarmista e totalmente questionável, induzindo o leitor a acreditar que finalmente teríamos encontrado indícios de vida extraterrestre em Marte. O fato de algumas rochas se assemelharem a animais, objetos ou até mesmo pessoas não passa de pura pareidolia. Tais semelhanças sempre foram e continuam sendo motivo de muita especulação em matérias sensacionalistas de tabloides britânicos. Em contrapartida, inúmeras alegações do gênero já foram amplamente refutadas (a exemplo do rosto de Cydonia) com o passar dos anos.