Um estudo apontou que as pessoas com letra feia são as mais inteligentes?
Novamente, o site “Mega Curioso” aparece por aqui devido a um artigo, um tanto quanto estranho, que foi publicado no dia 20 de dezembro de 2018, intitulado: “Estudo aponta que pessoas com letra feia são as mais inteligentes“.
Logo no início do texto é mencionado, ipsis litteris: “um estudo feito pela Universidade de Yale e publicado no Jornal Americano de Psicologia (The American Journal of Psychology) revelou que pessoas com uma caligrafia feia são as mais inteligentes“.
Contudo, será que isso é realmente verdade? Descubra a partir de agora aqui, no E-Farsas!
Verdadeiro ou Falso?
Segundo o texto do site “Mega Curioso”, publicado na seção de “Ciência”, a “grafologia, área que analisa a escrita, já descobriu há tempos que a letra de determinada pessoa pode dizer muito sobre sua personalidade“. Esse é um começo problemático, visto que a grafologia é uma pseudociência.
Em seguida, é mencionado que um estudo feito pela Universidade de Yale e publicado no Jornal Americano de Psicologia (The American Journal of Psychology) revelou que pessoas com uma caligrafia feia são as mais inteligentes. Esse é um outro ponto problemático, uma vez que o texto não apresenta o link, ou seja, o endereço virtual para o tal estudo. Ao longo do texto também são mencionadas três outras informações:
- Arnold L. Gesell, um falecido psicólogo e pediatra americano, apontou que crianças com uma caligrafia desleixada demonstram habilidades mentais acima da média, além de possuírem aspectos cognitivos mais apurados;
- Howard Gardner, criador da Teoria das Inteligências Múltiplas e professor de psicologia de Harvard, revelou que pessoas assim são mais criativas e ágeis. Por conta dessa agilidade, suas anotações são disformes e as abreviações são utilizadas sempre que possível;
- Ao final do artigo é mencionado, que os médicos teriam uma boa razão para escreverem com uma letra tão indecifrável, ou seja, isso seria uma prova de inteligência.
Apesar de parecer que, estamos diante de um artigo confiável, a alegação mencionada no título é falsa. Para piorar a situação, diversas informações no texto também estão incorretas. Vamos começar essa pequena saga, tentando entender a origem de tantos erros.
O Principal Problema do Artigo: As Fontes Escolhidas para Elaborar o Texto não são Confiáveis.
Para escrever o texto, a autora se baseou em três fontes (que vão se tornar quatro, e vocês já vão entender o porquê):
- Comunica.es (site espanhol de uma espécie de assessoria de imprensa): Segundo esse site, ter uma má caligrafia pode ser considerado um defeito, mas um grande número de estudos determinou que é realmente uma virtude (quais estudos? nada é mencionado). Como justificativa científica é mencionado, que pessoas com uma má caligrafia pensam mais rápido do que escrevem, típico de quem tem o Q.I. mais elevado. Além disso, segundo um estudo conduzido por Howard Gardner (qual estudo? novamente nada é mencionado), professor de psicologia em Harvard, essas pessoas são mais inteligentes e sua maior criatividade e agilidade levam a ter uma escrita muito mais rápida, o que fará com que as letras não sejam bem definidas e tendam a abreviações nas palavras. Curiosamente, o texto menciona a grafologia como pseudociência, mas sem dizer que a mesma indica o grau de inteligência de uma pessoa pela letra (publicado em 22/12/2017).
- FayerWayer (site chileno de curiosidades tecnológicas ligado a companhia de mídia “Metro Internationa”l): Segundo essa fonte, de acordo com um estudo da Universidade de Yale, que foi publicado pelo “American Journal of Psychology”, pessoas com letras feias tendem a ter uma capacidade intelectual mais alta (via WRadio, outra fonte). É mencionado que os alunos com melhores notas geralmente expressam suas ideias em textos menos elaborados, embora com boa grafia. Também é citada uma suposta conclusão de Arnold L. Gesell, dizendo que “crianças com letras ruins mostraram altas habilidades e agilidades mentais acima da média. Para elas, era mais importante a informação que elas tinham do que se esforçar por uma boa caligrafia.” (publicado em 20/12/2018)
- WRadio (site de uma rádio colombiana): Citou apenas o tal estudo de Yale (sem qualquer link), e a tal frase (também sem qualquer link) de Arnold L. Gesell (publicado em 19/12/2018)
- Hoy (site de um jornal paraguaio): Essa fonte foi a única a citar o nome do tal estudo (“La exactitud en la escritura a mano como relación en la inteligencia escolar y el sexo”). Disse também, que foi realizado pela Universidade de Illinois, e que o autor do estudo seria Howard Gardner, criador da Teoria das Inteligências Múltiplas (publicado em 27/02/2016).
Por incrível que pareça, todas as fontes estão erradas de alguma forma. Porém, o Hoy nos deu uma pista sobre o tal estudo. O nome em espanhol é exatamente a tradução do título original em inglês: “Accuracy in Handwriting, as Related to School Intelligence and Sex“, de autoria de Arnold L. Gesell (não Howard Gardner), publicado pela editora da Universidade de Illinois, no The American Journal of Psychology, em julho de 1906.
Sim, o estudo tem 112 anos, e não diz absolutamente nada sobre o que foi alegado anteriormente!
O Estudo de Arnold L. Gesell, que Foi Publicado em 1906
Arnold L. Gesell, falecido em 1961, era um psicólogo clínico, pediatra e professor que passou por diversos estabelecimentos de ensino, porém ficou mais conhecido por ser professor da Universidade de Yale, onde fundou o Centro de Estudos Infantis da instituição. Seu estudo, publicado pela Univesidade de Illinois, em 1906, possui 12 páginas (disponível gratuitamente para download, sem necessidade de cadastro), o tornando inviável de ser inteiramente traduzido nessa publicação. No entanto, fiz questão de ler esse estudo, e vou detalhar alguns pontos principais dele para vocês.
O alvo básico do estudo era a escrita escolar comum, considerada como uma função motora, sendo que, em sua visão havia algumas razões peculiares para que a escrita de um grande número de crianças em idade escolar fosse estudada naquela época. Além disso, o estudo limitava-se às diferenças nos rascunhos escritos pelas crianças, ou seja, as divergências perante a uma cópia perfeita. O material principal foi fornecido por 105 professores de escolas públicas de Worcester, Massachusetts, nos Estados Unidos. Cada professor apresentou quatro conjuntos de espécimes representativos escritos por alunos de sua série (foram alvo do estudo mais de 4.300 crianças da 1ª a 9ª série do Ensino Fundamental até o Ensino Médio).
No grupo I, por exemplo, estavam os três melhores escritores de sua série. No grupo II, os três piores escritores de sua série. No grupo III, os três alunos de maior capacidade mental, representados pela classificação escolar. E, no grupo IV, três alunos de menor capacidade mental, representados pela classificação escolar. Cada grupo também foi subdividido para selecionar alunos por alguns critérios: Inteligência escolar (Muito Boa, Boa, Razoável, Fraca, Muito Fraca); Inteligência Geral (Brilhante, Mediana, Lenta); Capacidade motora, mediante um julgamento cuidadoso da destreza muscular do aluno, tal como mostrado em Desenho, Costura, Treinamento Manual e aptidão geral no uso de dedos, mãos e braços (Habilidosa, Mediana, Desajeitada); Facilidade em Escrever (Fácil, Moderadamente Fácil, Difícil).
Adivinhem o que a tabela dos resultados apontam? De um modo geral, a precisão na escrita das crianças varia diretamente em relação a inteligência escolar. Na categoria de melhores escritores, por exemplo, a absoluta maioria era composta por mais meninas que meninos, com uma inteligência escolar muito boa ou boa, com uma inteligência geral brilhante ou mediana, com uma capacidade motora habilidosa ou mediana e uma grande ou mediana facilidade em escrever. Já os piores escritores eram justamente mais meninos do que meninas, de menores capacidades intelectuais, mais desajeitados e com maiores dificuldades para escrever. O estudo não diz que crianças com letra feia são mais inteligentes, até porque o foco do estudo não é exatamente a letra (no sentido de caligrafia), mas a escrita (no sentido de precisão no texto e ortografia).
Aliás, Arnold, ao contrário do que foi mencionado no texto do “Mega Curioso”, foi bem duro ao se referir as chamadas crianças “imbeciles” (antigo termo, atualmente pejorativo, que já foi amplamente utilizado por psiquiatras para definir pessoas com uma deficiência intelectual de moderada a grave). Ele chegou a dizer que seria errado concluir que o ato de escrever com a mão fosse possível mesmo com um grau muito baixo de inteligência. Por outro lado, um professor teria lhe dito que, uma criança taxada de “imbecile” (literalmente “imbecil”), quando tinha sua mente ocupada pela expressão de uma ideia, sua escrita se tornava desleixada e precária, porém quando o foco era somente o texto, dava uma melhorada (pg. 6). Isso sugeria que a precisão na escrita dependia de um “tipo de inteligência”, não um “grau de inteligência”.
Ao longo das páginas, Arnold descreve os resultados, citando diversos autores, estudos e conjecturas anteriores ao seu estudo. Ele diz, por exemplo, que o sexo (no sentido de gênero), era um fator relevante (pg. 4). O processo de aprendizagem seria uma “consciência visual do fim”, e a precisão relativa dos movimentos de escrita de meninos e meninas dependeria de sua relativa disposição e capacidade de manter tal consciência visual. A maioria absoluta dos professores relatou que as meninas escreviam mais prontamente do que os meninos. O número de meninas relatadas como minuciosas na escrita era quase o dobro do número de meninos. O número de meninos relatados como descuidados na escrita era mais de quatro vezes o número de meninas. O número de rapazes que relataram não gostar de escrever era seis vezes superior ao número de meninas.
Arnold citou outros autores que diziam, que as “mulheres tinham um gosto maior por trabalhar com as mãos“, e havia uma “maior proeminência da consciência visual” entre pessoas do sexo feminino. Mulheres também tinham maiores capacidades de aprendizado, eram mais diligentes, e isso acabava se traduzindo em um maior interesse em escrever (pg. 7).
Outros autores, no entanto, diziam que a inclinação por escrever era mais uma questão de estrutura anatômica e coordenação muscular da criança do que o capricho individual da parte desta ou o ensinamento por parte da escola. Nesse ponto, Arnold observou que o número de meninos e meninas considerados como ótimos escritores até a 5ª série era quase o mesmo: 71 x 70 (para as meninas). Porém, na 5ª série esse número mudava abruptamente, visto que o número de meninas se tornava o dobro em relação aos meninos e essa diferença se mantinha estável no restante das séries superiores.
Ele também tentou explicar, a razão pela qual os meninos tinham uma escrita tão ruim, principalmente na 1ª série, citando um autor chamado Havelock Ellis, que dizia que meninos eram três vezes mais suscetíveis a problemas de fala do que as meninas, e que a fala teria uma estreita ligação com a escrita (pg. 9). Havelock teria observado que gaguejos, e problemas de pronúncia e na fala, eram comuns entre homens considerados gênios na Grã-Bretanha. Ele atribuía esses problemas a péssima caligrafia deles. Aliás, citando outro autor, considerava que a ilegibilidade era uma doença, não uma virtude por escrever muito, visto que isso podia ser identificado logo nos primeiros anos de vida (pg. 10).
Assim sendo, segundo Arnold, “a precisão na escrita se traduz em um certo tipo de inteligência, e os resultados apontam que, em um grande número de casos, esse tipo particular de inteligência prevalece mais em meninas e em alunos acima da média escolar.”
Eis um resumão do estudo:
- Em um grande número de casos, a precisão na escrita de alunos do ensino fundamental tende a variar diretamente com a inteligência escolar;
- A partir da quinta série até o Ensino Médio, as meninas escrevem com mais precisão do que os meninos;
- Meninos apresentam uma grande tendência a uma escrita incoordenada desde a primeira série até o Ensino Médio;
- As diferenças entre sexos na escrita se tornam marcantes por volta dos dez anos de idade, e são largamente atribuíveis a fatores mentais;
- Se a escrita é um índice, qualidades meticulosas ou descuidadas em relação a função motora sugerem, em alunos de nível fundamental, as mesmas qualidades no trabalho escolar em geral.
Enfim, não há nada nesse estudo dizendo que, quem tem letra feia, é mais inteligente que os demais. Além disso, é sabido que uma escrita precária tem um efeito generalizado sobre o desempenho acadêmico de crianças com dificuldades de aprendizagem, porque escrever é uma ferramenta básica usada para fazer anotações, fazer trabalhos em sala de aula, tarefas etc…
A Teoria das Inteligências Múltiplas de Howard Gardner
Basicamente, a teoria das inteligências múltiplas diferencia a inteligência humana em “modalidades” específicas, em vez de ver a inteligência dominada por uma única habilidade geral. Howard Gardner é um psicológo norte-americano pertencente a Universidade de Harvard que, em 1983, sugeriu que a noção tradicional de inteligência, baseada em testes de Q.I., era muito limitada. Ele escreveu diversos estudos, livros que foram traduzidos em mais de 30 idiomas, e recebeu diversas honrarias ao redor do mundo. É uma teoria e uma classificação bem interessante, porque torna a “inteligência” mais genérica e inclusiva, por assim dizer.
Entretanto, a teoria de Howard Gardner não diz que pessoas que têm uma letra feia são mais inteligentes. Diz basicamente apenas que, embora cada um de nós tenha muitas maneiras de aprender e perceber informações, geralmente temos uma área principal onde nos destacamos.
A Grafologia é uma Pseudociência
Gostando ou não, acreditando ou não, se as empresas fazem uso disso para selecionar cadidatos ou não, a grafologia é uma pseudociência. Ela presume analisar a escrita para inferir sobre traços de personalidade. Não confundir, é claro, com grafoscopia, que é análise forense de documentos, uma coisa totalmente diferente.
A principal crítica à grafologia é a inexistência de base científica, que sustente o uso dessa técnica para a investigação da personalidade. A técnica de análise grafológica também é criticada por utilizar regras associativas de caráter simbólico ou analógico sem validade científica e metódica comprovada. Após longos estudos, a Sociedade Britânica de Psicologia definiu a grafologia com “validade zero”. Além disso, a Sociedade Britânica de Psicologia chegou a colocar a Grafologia no mesmo patamar da Astrologia. Jamais algo envolvendo pseudociência deveria ser colocado na categoria de ciência.
Para piorar a situação, nem mesmo um site destinado ao mundo da grafologia diz que a “letra feia” é um indicador de maior inteligência. Segundo o site Graphology World, a “letra feia” pode indicar uma certa quantidade de bagagem emocional, de pessoas emocionalmente voláteis, excêntricas, que não se ajustam a expectativa da sociedade, e de baixa auto-estima. Por outro lado, podem ser criativas e são citados exemplos notáveis de quem tinha “letra feia”, desde Beethoven até Freud.
Médicos têm Letras Feias Porque são Inteligentes?
Evidentemente, se a letra feia fosse um indicador de inteligência médica, não teríamos tantos casos de mortes por erros de diagnóstico e imperícia médica no Brasil e no mundo. Aliás, vale lembrar que quase metade dos médicos formados no exterior foram reprovados em ao menos uma das seis edições do Revalida, aplicado aqui no Brasil.
Porém, para finalizar, podemos citar um artigo publicado em um blog chamado “Nou Stuff“. Nele, a autora enumerou alguns estudos que tinham sido realizados até aquela época sobre a famosa “letra de médico”. Um estudo realizado em 2006, por exemplo, comparou a caligrafia dos médicos com a de engenheiros, contadores e advogados. Os resultados sugeriram, que a caligrafia dos médicos não era melhor ou pior do que a de outros profissionais com formação educacional comparável. Um outro estudo realizado 10 anos antes, obteve resultados semelhantes ao dizer, que “a caligrafia dos médicos não era menos legível do que a dos não-médicos”.
Havia estudos que diziam, que a péssima caligrafia entre médicos ainda era um problema na Medicina, e mais dois outros estudos muito curiosos: Um deles apontava que a letra de médicos era pior do que outros profissionais de saúde (um detalhe interessante é que as letras do alfabeto eram piores do que os números, evidenciando, talvez, a importância que os médicos davam para as doses dos medicamentos). Já o outro dizia que a letra de médicos mais jovens e com menos tempo de profissão era melhor do que médicos mais experientes, ou seja, a péssima letra poderia ser tão somente decorrente da profissão.
Como vocês puderam perceber os estudos relacionados a “letra de médico” podem variar consideravelmente em suas conclusões.
Conclusão
A alegação que um estudo apontou, que as pessoas com letra feia são as mais inteligentes é falsa. O estudo utilizado como referência para tal alegação não diz absolutamente nada sobre isso.