Vídeo mostra funcionários de clínica de aborto brincando com bebês mortos?
Desde o início de junho de 2019, um polêmico vídeo vêm circulando nas redes sociais. Com apenas seis segundos de duração, o vídeo inflamou os ânimos de grupos de viés conservador e contra o aborto. Nos Estados Unidos, um padre católico e ativista pró-vida chamado Frank Pavone disseminou esse vídeo através de sua conta no Twitter (arquivo).
Ele alegou que, durante uma investigação realizada por “eles” (talvez se referindo a sua associação, a “Priests for Life“), em relação ao que chamou de “indústria do aborto”, eles viram “aborteiros” brincando com bebês mortos. Em outra ocasião, os tais aborteiros estariam brincando de “ossinho da sorte” com partes de bebês abortados.
Não demorou muito tempo para que outras pessoas também disseminassem tal vídeo aqui no Brasil.
Posteriormente, o assunto saiu das redes sociais e foi parar em alguns sites de cunho religioso ou de viés conservador, assim como o Gospel Prime, RedState, Activist Mommy e Senso Incomum. Este último, inclusive, chegou a afirmar que o vídeo mostrava funcionários de uma clínica de aborto. Confira o vídeo abaixo:
Entretanto, será que estamos mesmo diante de bebês abortados? As pessoas que aparecem no vídeo são funcionários de uma clínica de aborto? São realmente médicos? Será que não se trata apenas de modelos anatômicos usados em faculdades de Medicina? Descubra agora, aqui, no E-Farsas!
A Inexistente Investigação Mencionada Pelo Padre Frank Pavone
Uma vez que esse tema é extremamente delicado é imprescindível que vocês leiam cautelosamente o artigo inteiro. Se vocês pularem diretamente para a conclusão não terão subsídios importantes para formarem suas opiniões sobre esse vídeo. Isto posto, vamos começar pela suposta investigação que teria sido realizada por Frank Pavone.
Ao realizarmos uma extensa pesquisa em mecanismos de busca, não encontramos qualquer investigação do padre Frank Pavone ou da “Priests for Life” relacionada a alegação de que aborteiros estariam brincando com bebês mortos. Também não encontramos nenhuma investigação relacionada ao vídeo disseminado por ele. Aliás, o vídeo, na verdade, é uma captura de tela realizada a partir de outro vídeo publicado no próprio Twitter. Note que uma segunda interface de exibição aparece bem no começo do vídeo.
Para sustentar sua alegação, o padre Frank Pavone deveria ter fornecido, no mínimo, os seguintes elementos:
- Qual a fonte original do vídeo?
- Quando e onde o vídeo foi gravado?
- Trata-se de uma suposta clínica de aborto? Qual o nome da suposta clínica?
- Quais os nomes dos indivíduos que aparecem na filmagem?
Contudo, não há nenhuma informação nesse sentido. Portanto, é falsa a alegação do Frank Pavone em relação a uma eventual investigação sobre o vídeo.
Quem é o Padre Frank Pavone?
O padre Frank Pavone é diretor nacional da “Priests for Life” (PFL), nos Estados Unidos, que por sua vez foi fundada em 1991 com o status canônico de “associação católica de fiéis”. É uma das mais proeminentes organizações pró-vida dos Estados Unidos, e opera em mais de 50 países ao redor do mundo.
A “Priests for Life” possui 11 ministérios, sendo que Pavone também pertence ao Grupo Consultivo Católico, composto de 34 membros, do presidente norte-americano Donald Trump. Esse grupo é basicamente um painel de proeminentes católicos destinados a aconselhar Trump sobre questões e políticas importantes para os católicos.
O trabalho da PFL e de Frank Pavone foi altamente elogiado, em 2015, pelo Vaticano, porém nem tudo são flores. Em 2011, foi noticiado que havia alegações sobre má administração financeira da “Priests for Life” recaindo sobre Pavone. Registros fiscais da época apontavam que, embora ele não recebesse nenhum salário da PFL, havia uma certa preocupação e questionamentos sobre a forma que a associação estava gastando os milhões de dólares dos fiéis.
Apesar de ser diretor nacional da PFL, Pavone era um padre pertencente a Diocese de Amarillo, no Texas.
Um Feto Abortado no Altar
Em 6 de novembro de 2016, dois dias antes da eleição para presidente nos Estados Unidos, Pavone fez duas transmissões ao vivo, em sua página no Facebook. Poderiam ser apenas meros sermões, mas as transmissões exibiram algo mais sombrio: o corpo de um feto morto, completamente nu, num altar cercado por duas velas acesas e diante do padre. Em ambos os vídeos (um de 44 minutos e outro de 4 minutos), Pavone exortou os telespectadores a votarem em Donald Trump, assim como nos republicanos para o Congresso, a fim de impedir que a prática do aborto gerasse mais vítimas inocentes.
Os vídeos foram deletados da página do padre, mas é possível ter uma noção do que aconteceu. Confira o vídeo publicado pelo canal “Inside Edition”, no YouTube:
Somados, os vídeos receberam mais de 1,2 milhão de visualizações. E, embora Pavone tenha recebido muito apoio nas redes sociais, um número expressivo de católicos também manifestou repúdio. A Diocese de Amarillo foi inundada de mensagens reprovando a atitude do padre. Em entrevista para o site “National Catholic Register”, ele disse que tais vídeos eram necessários no período eleitoral, “porque a palavra aborto havia perdido completamente seu significado“, inclusive entre pessoas pró-vida.
O Comunicado da Diocese de Amarillo
Quem não gostou nada disso foi Dom Patrick Zurek, bispo da Diocese de Amarillo. Eis os quatro pontos do seu comunicado publicado no site da diocese, no dia 8 de novembro daquele ano:
- A “Priests for Life” não é uma instituição católica, mas uma organização civil, e não está sob o controle ou supervisão da Diocese de Amarillo;
- O padre Frank Pavone postou um vídeo em sua página no Facebook, de corpo de um feto abortado, algo que é contra a dignidade da vida humana e uma profanação do altar. Acreditamos que ninguém que seja pró-vida pode explorar um corpo humano por qualquer motivo, especialmente o corpo de um feto;
- A Diocese de Amarillo lamenta profundamente a ofensa e indignação causadas pelo vídeo em relação ao fiéis e a comunidade em geral. A ação e apresentação do Padre Pavone neste vídeo não é consistente com as crenças da Igreja Católica;
- A Diocese de Amarillo abrirá uma investigação sobre o ocorrido.
A Origem do Feto
O padre Frank Pavone se enrolou completamente ao explicar a origem do feto. Em declaração ao National Catholic Register, Pavone disse que o feto havia sido temporariamente cedido a “Priests for Life” por uma pastor protestante, que o obteve por meio de um patologista, que por sua vez o obteve de uma clínica de aborto. Esse tal pastor teria entregue o feto a associação para que fosse providenciado o enterro. Entretanto, Frank se recusou a dizer quem seria o tal pastor, assim como não forneceu um cronograma geral que indicasse quando cada etapa do processo aconteceu.
Segundo o National Catholic Register, o corpo do feto estava intacto. Em princípio, seria uma vítima de aborto, mediante uso de prostaglandinas, e estava no segundo trimestre de gestação. As prostaglandinas são substâncias semelhantes aos hormônios. Apesar de terem diversas funções, no campo da obstetrícia as prostaglandinas intervêm no desencadeamento das contrações e do parto. Uma vez que induzem ao parto, acabam também sendo usadas como um método de aborto, principalmente em estágios mais avançados de gestação. Esse método é muito menos comum do que o aborto D&C (dilatação e curetagem), devido à maior probabilidade do bebê nascer vivo.
Enfim, de qualquer forma, aparentemente, nada aconteceu com Frank Pavone. No início de 2018, ele foi recebido com ares de celebridade na 45ª Assembleia pela Vida, realizada em Worcester, Massachusetts, nos Estados Unidos. Ele foi novamente questionado sobre o caso do feto, mas não mostrou nenhum arrependimento. Pavone disse que a mensagem tinha sido completamente válida. Aliás, ele comparou o que aconteceu a campanhas antitabagismo e contra o consumo de álcool no trânsito.
Uma Tentativa Inicial de Estabelecer a Origem do Vídeo
Uma vez que vocês já sabem quem é Frank Pavone, e que ele jamais investigou esse vídeo, é importante saber que isso não é tão recente assim. Assim sendo, fiz uma pesquisa no Google Trends, que serve como termômetro para saber quando um determinado assunto ganhou força na internet. Usei termos em inglês e espanhol.
Fazendo uma pesquisa entre 2004 e 2019 foram encontrados dois picos: em abril de 2014 e junho de 2015. Porém ambos eram tão somente falso-positivos, algo comum de acontecer nesse tipo de pesquisa.
O pico seguinte ocorreu em julho de 2018, mais precisamente entre os dias 3 e 12 de julho daquele ano.
Isso quer dizer que praticamente ninguém pesquisava sobre esse assunto, na internet, até o início de julho de 2018. Ao fazer uma pesquisa no Google, no entanto, encontrei resultados somente a partir de 8 de julho de 2018. Dois se mostraram relevantes. Um era referente a um blog sueco, cujo autor alegava ter encontrado o vídeo no YouTube. Já o outro se tratava de um artigo publicado por um site chamado “Life News”. É exatamente esse artigo que iremos conferir a partir de agora.
O Artigo Publicado pelo Site “Life News”
O “Life News” se autointitula um site pró-vida dedicado a falar sobre o aborto, a eutanásia, o suicídio assistido e a pesquisa com células-tronco. Parece ótimo, porém o site habitualmente dissemina conteúdo falso, indeterminado ou mistura informações verdadeiras e falsas em seus textos. Portanto, não é uma fonte tão confiável assim de informações, visto que não há uma checagem eficaz do que é publicado. É muito mais militância do que informação. Tendo isso em mente, vamos entender o que foi mencionado sobre o vídeo.
Logo no início do artigo, publicado no dia 9 de julho de 2018, foi mencionado que o vídeo tinha surgido no fim de semana anterior (entre os dias 7 e 8) nas redes sociais. O vídeo mostrava dois homens usando jalecos brancos brincando com o que pareciam ser bebês abortados. Os homens, cujos rostos não apareciam no vídeo, pegaram esses bebês e os fizeram “dançar” como se fossem bonecos.
A Opinião de um Homem Chamado “Troy Newman”
Segundo Troy Newman, presidente da “Operation Rescue”, era evidente que os corpos não eram modelos anatômicos ou bonecos.
Nesse ponto é importante ressaltar, que a “Operation Rescue” é uma organização antiaborto norte-americana. Já Troy Newman é um ativista bem polêmico. Em seu verbete, na Wikipedia, é mencionado que Newman acredita que a existência de comunidades LGBT representa uma ameaça aos Estados Unidos como um todo. Ele também já teria alegado, que a recessão econômica no final dos anos 2000 e eventos climáticos extremos teriam sido provocados por Deus como punição devido a legalização do aborto, e da tolerância para com membros de comunidades LGBT.
Troy Newman Não é Médico
Apesar de sua visão de mundo, um tanto quanto radical e infundada, esse é o menor dos problemas. O maior problema é que o site “Life News” não foi capaz de consultar nenhum profissional da área da saúde para opinar sobre o assunto. Troy Newman não é médico. Ele alega ter sido engenheiro elétrico por muitos anos, tendo interesses no setor imobiliário, que certo dia resolveu atuar na militância antiaborto.
Enfim, ainda segundo Troy, a partir das pistas fornecidas no vídeo, era possível constatar que ele era autêntico, e que houve brincadeiras desrespeitosas com os corpos de bebês mortos. No entanto, ele disse que a fonte original do vídeo, onde e quando foi filmado, e de onde os corpos de bebês abortados teriam vindo, permanecia um mistério. Não havia como saber se os homens teriam tido participação no processo de aborto. Além disso, era possível que os bebês abortados tivessem sido doados a um hospital ou centro de pesquisa.
Troy também alegou que possuía “informantes confidenciais“, e que eles diziam que esse tipo de “humor ácido” costumava ocorrer em clínicas de aborto. Porém, não apresentou nenhum outro vídeo nesse sentido. Absolutamente nada.
A Parcialidade do “Life News”
O artigo do site “Life News” foi publicado por Cheryl Sullenger, vice-presidente da “Operation Rescue”.
Um “Buraco” na Nuca
De acordo com o site “Life News”, uma das evidências de que os corpos fossem de bebês abortados se encontrava no final do vídeo. Qual a evidência? Um “buraco” na nuca de um dos corpos. Segundo o site, esse “buraco” lembrava o que costumava ser praticado por Kermit Gosnell, um aborteiro da Filadélfia. Kermit inseria uma tesoura e cortava a medula espinhal de bebês após 20 semanas de gestação. Esse procedimento era feito com bebês que nasciam vivos durante abortos malconduzidos. Sim, extremamente cruel.
Kermit cumpre atualmente prisão perpétua, sem qualquer chance de liberdade condicional, devido a uma série de crimes e violações cometidas ao longo de sua carreira. A lista de práticas e procedimentos totalmente condenáveis por parte de Kemit é absurdamente extensa.
Ainda de acordo com o site, o tal “buraco” poderia ser uma variação de um procedimento adotado no chamado “aborto com nascimento parcial” (partial-birth abortion). Apesar de “nascimento parcial” não ser um termo médico, mas de viés político, sua prática é proibida nos Estados Unidos desde 2003. Não iremos entrar em detalhes sobre esse método, que pode ser amplamente pesquisado em mecanismos de busca. De qualquer forma, o “Life News” não tinha nenhuma certeza sobre isso, apenas especulações.
A Suposta Origem do Vídeo
O site “Life News” alegou que o vídeo teria aparecido, pela primeira vez, cerca de duas semanas antes. Ele teria sido publicado por uma página chamada “Vídeos Mundo Curioso“, no Facebook. Ainda segundo o “Life News” essa página publicava vídeos de “natureza incomum” e, na época, teria obtido 9,3 milhões de visualizações. Posteriormente, o vídeo teria ido parar no YouTube e no Twitter.
Ao pesquisarmos por essa página, notamos que o vídeo foi deletado. Contudo, é possível notar que a página é destinada a publicação de memes e vídeos de conteúdo apelativo e de humor. Há diversas fotos e frases tiradas de seus contextos originais. Além disso, não são divulgadas maiores informações sobre os vídeos que são publicados na páginas. Frequentemente as descrições não passam de clickbait, e não traduzem a realidade por trás dos vídeos. Portanto, não é fonte confiável.
Continuando Nossa Investigação: Uma Controvérsia Ocorrida Durante a Disseminação Desse Vídeo
Rastrear esse vídeo é uma tarefa um pouco inglória, visto que as plataformas costumam retirá-lo do ar. Isso quer dizer que as plataformas reconhecem que o vídeo retrata bebês abortados? Não necessariamente. Geralmente, os vídeos acabam sendo deletados pelo volume de denúncias por parte usuários que acreditam nessa hipótese. Há casos em que o vídeo é apenas parcialmente censurado. Para completar, conteúdos publicados em redes sociais muitas vezes não são indexados pelos mecanismos de busca, o que dificulta, e muito, o rastreamento.
Através de uma combinação de palavras chegamos a alguns resultados interessantes. Algumas cópias desse vídeo, por exemplo, ainda se encontram disponíveis em páginas no Facebook. Entre elas podemos citar a “Alerta Mexico UNIDO” (04/07/2018 | arquivo), “Historias Reales Siguatepeque” (29/06/2018 | arquivo) e “Increíble Mondo” (28/06/2018 | arquivo).
Repararam em algo interessante nas descrições? As páginas “Alerta Mexico UNIDO” e “Historias Reales Siguatepeque” alegaram que os homens que aparecem na filmagem seriam médicos. Contudo, a página “Increíble Mondo” alegou que seriam estudantes.
O Histórico de Edições da Publicação da Página “Increíble Mondo”: Seriam Apenas Bonecos?
E essa não é a única parte interessante. Confiram o histórico de edições da publicação referente a página “Increíble Mondo”:
No dia 28 de junho de 2018, a página publicou o vídeo descrevendo como se médicos estivessem brincando com corpos de bebês abortados. Contudo, no dia 5 de julho, a descrição indicava que se tratava de bonecos, sem vida. Já no dia 18 de agosto, a descrição passou a informar que estudantes estariam brincando com fetos, sem indicar a causa da morte. Estranho, não é mesmo?
Uma Outra Publicação Ainda Mais Antiga
Em nossa pesquisa encontramos uma outra publicação, no Facebook, datada de 17 de junho de 2018 (arquivo), cerca de três semanas antes da publicação do site “Life News”. Dessa vez a publicação era de um usuário brasileiro, que recebeu cerca de 11 mil comentários e 30 mil compartilhamentos! Posteriormente, o vídeo foi deletado.
Essa outra publicação, infelizmente, também não forneceu nenhum outro detalhe adicional. Um usuário chamado Pedro chegou a compartilhar essa publicação, alegando que teria visto o vídeo completo, e que não se tratava de bebês abortados, mas tão somente bonecos. Entramos em contato com esse usuário para saber o que ele quis dizer com “vídeo completo”. Porém, até o momento não obtivemos resposta.
Haveria uma outra versão desse vídeo com maior duração e com maior qualidade de imagem? Até o momento do fechamento deste artigo, não sabemos.
Os Argumentos Para as Mais Diversas Hipóteses Sobre um Mesmo Vídeo
Uma vez que foram divulgadas diferentes versões para um mesmo vídeo e não temos informações suficientemente claras sobre ele, diversas hipóteses foram levantadas. E aqui reside um detalhe primordial: afirmar categoricamente ou disseminar somente a hipótese que mais agrada, seja por viés de confirmação ou viés político-partidário, é impreciso e incorreto.
1) A Hipótese de Serem Apenas Bonecos/Modelos Anatômicos
Ao assistir o vídeo, milhares de usuários começaram a acreditar que se tratavam apenas de bonecos/modelos anatômicos. E, para isso, forneceram os mais diversos argumentos:
- Os corpos não possuem uma única gota de sangue. Os bebês vêm ao mundo cobertos de sangue e secreções, sendo que não há indícios disso no vídeo;
- Os corpos também estariam flexionados de uma forma incomum, caso fossem bebês de verdade;
- Alguns usuários alegaram que as pernas parecem inflar e desinflar conforme são dobradas. Esse seria um comportamento esperado de um boneco;
- O buraco, supostamente na base do crânio, não se parece com a imagem fornecida como referência. Para muitos o vídeo mostra apenas a cabeça desinflada de um boneco;
Ao fazermos uma rápida pesquisa na internet, encontramos diversos modelos anatômicos utilizados por instituições de ensino:
Caso queiram fazer uma busca por conta própria, confiram os modelos disponíves nos sites “Maternal Source“, “Universal Medic” e “Anatomy Warehouse“.
Entretanto, existem ao menos dois detalhes que colocam em xeque essa hipótese:
- Por que os médicos ou estudantes estão usando luvas descartáveis? Isso seria realmente necessário para manusear tão somente bonecos?
- Por que tais bonecos estão em uma espécie de bandeja/cuba metálica comumente usada em laboratórios? Se fossem tão somente bonecos, por qual motivo não foram apoiados diretamente na bancada?
2) A Hipótese de Serem Corpos Reais de Bebês Abortados
Uma ginecologista obstetra norte-americana chamada Dr. Jennifer Gunter é bem popular e polêmica no Twitter, visto que, frequentemente, ela desconstrói mitos relacionados ao aborto e outros conceitos médicos disseminados de forma equivocada.
“Não sei dizer se são espécimes antigos, bonecos ou corpos no necrotério. Não acredito que as pessoas se vestiriam assim para manusear bonecos. Também não sabemos se são fetos, recém-nascidos prematuros que vieram a óbito ou se são primatas não humanos! No entanto, não há nada no vídeo que me diga, que isso ocorreu imediatamente após um aborto“, disse a Dr. Jennifer Gunter.
Mais Opiniões de Profissionais da Área da Saúde
O site espanhol “Maldita.es” também foi atrás de maiores informações sobre esse vídeo. Assim como nós, o “Maldita.es” também não conseguiu atestar, com precisão, o que foi demonstrado durante os seis segundos de vídeo. Entretanto, ainda assim, especialistas nas áreas de Neonatologia e Pediatria, chegaram a um certo consenso sobre o vídeo: não estaríamos diante de uma clínica de aborto, mas os corpos dos bebês seriam fruto de abortos intra ou extrauterinos, ou seja, em princípio, não seriam bonecos.
A Opinião de Alberto García
“Acredito que seja um laboratório de aulas práticas, não uma clínica de aborto. Durante o curso de Medicina, nos deparamos com fetos que são mantidos em líquidos, em frascos. Porém, esses fetos são frutos de abortos espontâneos. Pelo contexto (os jalecos, luvas, e bandeja de alumínio) poderia se tratar de estudantes de Medicina manuseando fetos, que foram preservados para estudo e que não apresentam rigidez devido o passar do tempo. Não creio que sejam bonecos, tampouco abortos induzidos por médicos. Parece que tiveram uma morte fetal intrauterina“, disse Alberto García Salido, intensivista pediátrico da Unidade de Terapia Intensiva Pediátrica, do Hospital Infantil da Universidade Niño Jesús, em Madri.
Segundo García, após a morte natural de um feto, há ocasiões em que os pais decidem doá-lo à ciência para que sejam estudadas as causas do aborto e que seja realizada uma autópsia.
A Opinião de Gonzalo Oñoro
Gonzalo Oñoro, neonatologista e pediatra, além de um dos responsáveis pelo site “Dos Pediatras en Casa“, disse que os fetos poderiam ter entre 26 e 28 semanas, e pesar entre 700 a 900 gramas.
“Ao nascer, esse tipo de criança tende a ser pletórica, ou seja, tem muita hemoglobina (o que corresponde a uma cor avermelhada)“, disse Oñoro.
No entanto, no vídeo, os fetos apresentam um tom marrom-acastanhado.
“Isso me faz pensar que são fetos conservados, ou seja, não foram abortos recentes e que, de qualquer forma, teriam acrescentado algum conservante, como formaldeído, para não apodrecerem“, continuou.
Outra razão pela qual Oñoro também acredita, que os fetos não vêm de uma clínica de aborto, mas de abortos espontâneos que foram preservados, é a posição deles, uma vez que estes estão encolhidos.
“Para que essa posição seja possível, é necessário que haja contração muscular, e isso seria impossível no caso de não terem sido preservados“, completou.
A Opinião de Héctor Alonso
Héctor Boix Alonso, neonatologista do Hospital Vall d’Hebron, em Barcelona, acredita que os fetos do vídeo podem ser resultado de um aborto extrauterino ou pós-natal.
“Os fetos que morrem de forma intrauterina costumam ter seus tecidos em piores condições, são mais macerados, não tão consistentes quanto os que aparecem nas imagens. Estaria inclinado a pensar que eles são fetos mortos após o nascimento, não abortos voluntários. Não posso descartar que eles sejam bonecos, mas acredito que são muito bem feitos para serem bonecos“, disse Alonso.
A opinião de Héctor é um tanto quanto interessante, porque ele não descartou completamente a hipótese de serem bonecos. Apenas considerou que não parece ser o caso. Essa é a razão pela qual mencionamos que havia um certo consenso entre as opiniões dos três profissionais consultados. Todos eles também apontaram para a gravidade dessas imagens, independentemente do que representem.
De acordo com Héctor, a falta de profissionalismo e ética dos autores do vídeo não se altera, ainda que sejam bonecos. Tais encenações jocosas causam prejuízo a profissão e sua credibilidade junto à sociedade. Portanto, não é de estranhar que o vídeo venha sendo eliminado das redes sociais.
Uma Última Observação
Antes de concluir este artigo, gostaria de mostrar o seguinte frame:
Neste frame é possível notar alguns detalhes apontando que não se trataria de uma clínica de aborto. Ao fundo vemos uma lousa branca na parede, tipicamente usada para fazer anotações. Também podemos notar uma série de bancadas na sala, típicas de uma sala de aula. Algumas pastas transversais se encontram sobre uma das bancadas ao fundo. Tais pastas também são comumente usadas por universitários.
Resumindo? O ambiente em que o vídeo foi gravado, em princípio, não sugere se tratar de uma clínica de aborto, mas de um laboratório de aulas práticas de alguma instituição de ensino.
Conclusão
Embora haja todo um conjunto probatório indicando que o vídeo não tenha sido gravado em uma clínica de aborto, não temos como atestar quem são as pessoas que aparecem no vídeo, ou seja, se são médicos ou estudantes de Medicina. Da mesma forma, há certas dúvidas se os corpos dos fetos são apenas modelos anatômicos ou frutos de abortos espontâneos/morte fetal intra ou extrauterina. A hipótese de que sejam fetos recém-abortados ou oriundos de abortos voluntários, no entanto, ao menos até o presente momento, é remota. Portanto, por precaução, classificaremos temporariamente esse caso como “indeterminado”.
Desde 2018, esse vídeo vem sendo veiculado de forma parcial por sites, páginas e perfis no Facebook e no Twitter. Tal divulgação, feita sem qualquer análise mais aprofundada e sem consultar nenhum profissional da área da saúde, induz a opinião pública em prol de uma determinada causa, independentemente do valor ético ou moral que ela possua. Enquanto isso, a guerra de narrativas ecoa pelas redes sociais. Mulheres e crianças sofrem. Elas merecem ser mais do que estatísticas, discussões em tribunais ou cenas de novelas. Merecem ser mais do que pastas em arquivos metálicos ou corpos em um necrotério. Merecem ter suas vozes ouvidas. Merecem ter aconselhamento adequado. Merecem apoio e respeito.
Se a sua causa é justa e verdadeira, qual a necessidade de mentir? Qual a necessidade de praticar atos grotescos em via pública ou torná-la motivo de guerrilha? E isso vale para ambos os lados. Tanto para aqueles favoráveis quanto para aqueles contra a prática do aborto. É necessário ter um diálogo aberto, franco e que a saúde da mulher e do feto prevaleçam, porque todas as vidas importam. E, no fim, que a única coisa a ser enterrada a sete palmos de terra seja tão somente o ódio.
Jornalista e colaborador do site de verificação de fatos E-farsas entre janeiro de 2019 e dezembro de 2020. Entre junho de 2015 e abril de 2018, trabalhei como redator do blog AssombradO.com.br, além de roteirista do canal AssombradO, no YouTube, onde desmistificava todos os tipos de engodos pseudocientíficos e casos supostamente sobrenaturais.